sábado, 18 de abril de 2015

""O mais curioso é que neste mundo de máquinas e de caminhos de ferro", diz uma das personagens, "enquanto circulam os comboios e trabalham as fábricas, dois homens se defrontem e disparem um contra o outro." Espanta, pois, que no meio desta transformação do mundo mole em mundo duro se mantenham emoções - se mantenha o ódio.
Continua Bertrand, uma das personagens do romance: "O que chamamos sentimentos constitui o que há de mais persistente no nosso ser. Trazemos connosco um fundo indestrutível de conservadorismo. São os sentimentos, ou antes, convenções sentimentais."
Como se o progresso não chegasse nunca a tocar, muito menos a alterar, esse fundo do corpo, essa parte anterior e antiga - a parte que sente. Eis que, lá no fundo, algo no corpo humano, continua - utilizemos de novo a palavra - mole. No entanto, tal diagnóstico não determina o final, o final ainda não chegou: algo se poderá ainda alterar: "Eu penso que o nosso sentimento da vida caminha sempre com um atraso de meio ou mesmo de um século em relação à verdadeira vida, à vida real."
Algo que ainda não progrediu o suficiente - esse tal «sentimento de vida», esse corpo que sente é um corpo desactualizado: "O sentimento é, de facto, sempre menos humano que a vida no meio da qual nos encontramos."
Sentimos ainda, ou o corpo ainda sente porque ainda não evoluiu o bastante; o sentimento "é preguiçoso", e o mundo é dominado "pela preguiça do sentimento".
É como se os sentimentos humanos estivessem ainda no século XIX e a técnica já no século XXI."

Gonçalo M. Tavares, Atlas do corpo e da imaginação

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