terça-feira, 27 de dezembro de 2011

-Desculpa mas tenho mesmo que atender esta chamada.
-Sim, claro.
-Olá mãe. Está tudo bem? Já marquei a cirurgia. É dia 3 de Outubro. Sim, eu sei que é o meu aniversário mas é esse o melhor dia porque é uma segunda feira e depois tenho o resto da semana de férias para recuperar. O médico disse que tenho de lá ficar essa noite. Não, é anestesia geral. Vai correr tudo bem, não te preocupes. Não é necessário vires, a sério. Sim, está bem. Sim. Sim. Então vá, até amanhã. Beijinho.
-Vais fazer uma cirurgia?
-Sim. Vou extrair um lipoma. Não é nada grave.
-O que é um lipoma?
-É uma massa de gordura que se aloja numa zona do corpo.
-E em que zona do corpo está o teu lipoma?
-Na região púbica.
-Gostava de ver esse teu lipoma. (sorriso malandro)
-Se o lipoma estivesse em outro sítio até mostrava.
-Por que é que só mostravas se estivesse noutro sítio?
-Não me digas que queres que me dispa aqui no restaurante.
-Não, mas podemos ir para tua casa e mostras lá.
-Não ias gostar de ver. É muito inestético.
-Tenho a certeza que ia gostar de ver.
-Antes de veres o meu lipoma temos muito que conversar.
-Conversemos então.
-Ainda moras em Massamá?
-Sim.
-Com a Soraia e os vossos filhos?
-Sim. O que é que queres saber mais?
-Na verdade não quero saber mais nada.
-Como assim? Não foste tu que disseste que tínhamos muito que conversar?
-Sim, fui. Mas enganei-me. Afinal não há mais nada para conversar.
-Vou-me embora então. Eu sempre soube que não querias ser minha amiga. (zangado)
-Se quisesses ser só meu amigo não querias ir para minha casa ver a minha região púbica.
-Vai p'ró caralho!

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

"e depois conversei com ela em assuntos só nossos, perguntando, sem resposta, porque lhe deste pernas abertas a cheirar maldade que te sujeitou deus no buraco. bondade que tivesses fugias a casa de teu marido, para te reservares de proximidades só de quem te desposou. porque lhe deste tu oportunidade, minha ermesinda. nem que te cales te perdoo, cada vez menos to aceito, e se nada me contas mais te invento teres feito e mais o imagino e fico louco de to atribuir. e não me dizes mais nada, por deus, se te usasse a língua palavra uma que te salvasse, eu te daria toda a guarida do mundo e, mais que isso, todo o tamanho do meu coração. diz-me, ermesinda, diz-me que coisas te fazia dom afonso, como te fazia e em que diferia, para te merecer todas as manhãs e segredo até de mim. e a minha ermesinda não abria boca. não dizia nada."

valter hugo mãe, "o remorso de baltazar serapião"

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

"Que miséria! Retrocedi vinte anos mas só de alma, infelizmente! Aqui estou eu à espera de uma mulher, embora desde há muito sinta desprezo pelos apaixonados e pelas amantes; de cinco em cinco minutos olho para o relógio e mesmo sem querer ponho-me à escuta, para ver se oiço os seus passos na escada!
Não, não haja dúvidas! Como é difícil de arrancar a pequena flor azul, a erva daninha da alma, e como volta a nascer! Não aparece durante vinte anos e de repente, sem sabermos porquê nem como, dá rebentos, brota em tufos que não conseguimos desenredar! Meu Deus, como sou estúpido!"

J.-K. Huysmans, "Além"