quinta-feira, 12 de janeiro de 2017

"Manter-me-ei, uma vez mais, na tradição de Gouffé, desta vez elaborando um prato de chourição das ilhas com porto-moscatel.
- E isso faz-se... - disse Colin.
- Da seguinte maneira: «Agarre um chourição e esfole-o sem querer saber dos seus gritos. Guarde cuidadosamente a pele. Lardeie o chourição com patas de lavagante cortadas aos bocadinhos e passadas, num abrir e fechar de olhos, por manteiga muito quente. Deixe cair o chourição sobre gelo, posto numa caçarola leve. Levante o fogo, e no espaço assim obtido disponha com gosto rodelas de moleja cozidas em lume brando. Quando o chourição emitir um som grave, retire-o rapidamente do fogo e regue-o com um porto de boa qualidade. Mexa com uma espátula de platina. Unte uma forma e vá guardá-la para não se enferrujar. No momento de servir, com um saquinho de litínios faça uma infusão num quarto de litro de leite fresco. Guarneça com as molejas, sirva e vá-se embora»"

Boris Vian, A espuma dos dias

quarta-feira, 11 de janeiro de 2017

"A senhora talvez seja demasiado nova para saber que a nossa vida é muito simples. Só se torna insuperavelmente complicada quando pensamos em nós. Mas no momento em que deixamos de pensar em nós para nos perguntarmos como podemos ajudar alguém, é tudo muito simples!
Agathe ficou calada, pensando. E, fosse pelo silêncio dela ou pela distância encorajante em que ressoavam as suas palavras, o estranho continuou a falar sem olhar para ela:
- A sobrevalorização de tudo o que é pessoal é uma superstição moderna. Fala-se tanto do culto da personalidade, de viver a vida até ao fim, da afirmação da vida! Mas com essas palavras vagas e ambíguas os seus apologistas só mostram que precisam de névoa para esconder o verdadeiro sentido da sua rebelião! Afirmar, mas afirmar o quê? Tudo, sem excepção e em grande confusão! A evolução está sempre ligada a uma pressão contrária, disse um pensador americano. Nós não podemos fazer evoluir uma parte da nossa natureza sem impedir o desenvolvimento da outra. E viver até ao fim, mas o quê? O espírito ou os instintos? Os caprichos ou o carácter? O egoísmo ou o amor? Para que a nossa natureza mais elevada se afirme, a mais baixa tem de aprender a renúncia e a obediência.
Agathe pôs-se a pensar por que razão havia de ser mais simples cuidar dos outros do que de si própria. Era uma daquelas naturezas nada egoístas que pensam sempre em si, mas não cuidam de si; e isso está mais distante do egoísmo comum, sempre preocupado com as suas vantagens, do que do altruísmo tranquilo daqueles que se preocupam com o próximo. Por isso aquilo que o homem a seu lado lhe dizia lhe era radicalmente estranho, sem deixar de a tocar de algum modo, e as palavras soltas, tão energicamente pronunciadas, moviam-se de forma inquietante à sua frente, como se o seu sentido fosse mais para ser visto no ar do que ouvido."

Robert Musil, O homem sem qualidades II, p. 367

terça-feira, 10 de janeiro de 2017

"- Vê se me dás mais atenção! - pediu Agathe. - Sou uma mulher activa, com alguma actividade nos negócios ou na vida intelectual? Não. Sou uma mulher apaixonada? Também não. Sou uma companheira e mãe dedicada e equilibrada, que facilita as coisas e constrói um ninho? Ainda menos. O que me resta então? Para que sirvo eu neste mundo? A sociedade que frequentamos, confesso-te francamente, é-me absolutamente indiferente. E quase acredito que podia bem passar sem toda essa música, literatura e arte que deleita os círculos cultos. Já não posso dizer o mesmo de Hagauer: ele precisa de tudo isso para as suas citações e referências. Pelo menos tem sempre ao seu dispor o lado agradável e ordenado de uma colecção. Não terá ele razão quando me acusa de nada produzir e de recusar a «riqueza humana e moral», e me dá a entender que só ele, o professor Hagauer, é capaz de me compreender e perdoar?
Ulrich devolveu-lhe a carta e respondeu calmamente:
- Encaremos o problema de frente: indo directo ao assunto, tu és de facto socialmente imbecil!"

Robert Musil, O homem sem qualidades II, p. 351

segunda-feira, 9 de janeiro de 2017

"Quando penso na minha primeira infância, parece-me que nessa altura o dentro e o fora mal se distinguiam. Se gatinhava em direcção a alguma coisa, ela vinha ao meu encontro, voando; e quando acontecia alguma coisa importante para nós, não éramos só nós que ficávamos excitados, as próprias coisas começavam a vibrar. Não estou a dizer que éramos mais felizes do que fomos depois. Ainda não nos possuíamos a nós mesmos; no fundo, ainda não existíamos, a nossa condição de pessoa ainda não se distinguia da do mundo. Parece estranho, mas é verdade: os nossos sentimentos, as nossas vontades, e mesmo nós próprios ainda não estávamos inteiramente em nós. Mais estranho ainda seria eu dizer: ainda não nos tínhamos afastado suficientemente de nós próprios. De facto, se hoje, num momento em que julgas estar de posse de ti própria, te perguntares excepcionalmente quem és, farás esta descoberta. Ver-te-ás sempre a partir de fora, como uma coisa. Apercebes-te de que numa ocasião ficas irritada e noutra triste, como um casaco que ora está molhado ora é quente. A mais atenta observação permitir-te-á, quando muito, descortinar as motivações dos teus actos, mas nunca penetrar a fundo em ti. Faças o que fizeres, ficas fora de ti própria - e as excepções são apenas aqueles poucos momentos em que todos dirão que estás fora de ti. A compensação encontrámo-la, já adultos, ao chegarmos ao ponto de podermos pensar, em cada ocasião e porque isso nos diverte: «Eu sou.» Vês um carro, e de algum modo vês também, como uma sombra: «Eu estou a ver um carro.» Amas ou estás triste, e vês que estás assim. Mas, em sentido estrito, nem o carro, nem a tua tristeza ou o teu amor ou tu própria estão inteiramente aí. Nada está da mesma maneira aí, inteiro, como esteve na infância. Pelo contrário, tudo aquilo em que tocas, até ao mais íntimo de ti, fica como que petrificado assim que chegas a ser uma «personalidade»; e o que resta, envolto numa existência totalmente exterior, é apenas o fio de névoa espectral da autoconsciência e de um indistinto amor-próprio. O que é que há de errado nisto? Ficamos com a impressão de que alguma coisa poderia ainda ser corrigida! Não se pode afirmar que uma criança tenha experiências totalmente diferentes das de um homem. Não tenho resposta definitiva para isso, ainda que possa haver uma ou outra ideia sobre o assunto. Mas há muito tempo que respondi a essa questão à minha maneira: perdi o amor por esse modo de ser eu próprio e por esse tipo de mundo."

Robert Musil, O homem sem qualidades II, p. 289

sábado, 7 de janeiro de 2017

"Talvez todo o ser humano pensante - dizia para consigo, à laia de desculpa - tenha dentro de si essa ideia de ordem, tal como certos adultos usam por baixo da roupa a imagem do santinho que a mãe lhes pendurou ao pescoço em criança. E essa imagem de ordem, que ninguém ousa levar a sério, mas também não rejeita, não pode ser muito diferente do seguinte: numa das faces ostenta a representação vaga de uma nostalgia da lei de uma vida justa, severa e natural, que não permite excepções nem descarta objecções, libertadora como o êxtase e sóbria como a verdade; mas na outra face está representada a convicção de que os nossos próprios olhos nunca verão uma tal lei, os nossos pensamentos nunca a pensarão, que ela não será realizável pela mensagem ou a autoridade individual, mas apenas pelo esforço de todos, se não for mesmo uma pura quimera. Ulrich hesitou um momento. Era sem dúvida um homem crente, mas sem acreditar em nada: nunca a sua grande dedicação à ciência conseguira fazê-lo esquecer que a beleza e a bondade dos homens vêm daquilo em que eles acreditam, e não daquilo que eles sabem. Mas a fé sempre esteve ligada ao saber, apesar de este ser imaginário, desde os primórdios da mágica descoberta da ciência. E essa antiga parte da ciência há muito que apodreceu, arrastando consigo a fé para a mesma decomposição: o que importa fazer hoje é reconstituir essa aliança. Naturalmente, não apenas levando a fé «às alturas da ciência», mas permitindo que ela voe a partir dessas alturas. É preciso praticar de novo a arte da elevação acima do saber. E como isto não é tarefa para um indivíduo sozinho, todos teriam de orientar para aí o espírito, esteja ele onde estiver. E quando Ulrich, nesse momento, pensava num plano para décadas, séculos ou milénios, que a humanidade imporia a si mesma para orientar os seus esforços no sentido de um objectivo que ainda não pode conhecer, não precisava de se interrogar muito para saber que desde sempre tinha imaginado isso, sob os mais diversos nomes, como a autêntica vida experimental. De facto, a palavra fé significava para ele não aquela raquítica vontade de saber, a ignorância crédula que em geral se associa a ela, mas, pelo contrário, um saber de intuição, qualquer coisa que não é nem saber nem ilusão, que não é fé, mas sim aquela «outra coisa» que escapa precisamente a esses conceitos."

Robert Musil, O homem sem qualidades II, p. 201