quinta-feira, 29 de novembro de 2012

"O estar-fora-do-tempo, disse Austerlitz, que ainda há pouco vigorava tanto nas regiões atrasadas e esquecidas do nosso país como nos continentes por descobrir além-mar, continua a vigorar mesmo numa metrópole temporal, como Londres. Os mortos estão fora do tempo, os moribundos e todos os doentes, em casa ou nos hospitais, e não apenas estes, basta um tanto de infelicidade pessoal para nos separar do passado e do futuro. Na verdade, disse Austerlitz, nunca possuí qualquer relógio, de parede ou despertador, de bolso e muito menos de pulso. Os relógios sempre me deram vontade de rir, coisa basicamente mentirosa, talvez porque sempre resisti ao poder do tempo graças a um impulso interior que eu próprio não entendo muito bem, sempre me fechei à chamada actualidade, na esperança, penso eu hoje, disse Austerlitz, de que o tempo não passe, não seja passado, de poder ir atrás dele, de encontrar à chegada tudo como dantes, ou, melhor dizendo, de descobrir que todos os momentos do tempo existiram simultaneamente, caso em que nada do que a história conta seria verdade, os acontecimentos não aconteceram, estão à espera de acontecer no momento em que pensarmos neles, embora, naturalmente, a perspectiva pouco animadora de eterna infelicidade e interminável dor fique assim em aberto."

W. G. Sebald, Austerlitz

domingo, 25 de novembro de 2012

"Aquela satisfação, aquele espanto, que se opunham, opunham-se completamente, ao aborrecimento, muitas vezes apenas são experimentados depois das pessoas envolvidas terem passado por situações em que tiveram medo e sofreram perdas. No entanto, quanto a mim, depois de se ter contacto com estas sensações, dificilmente elas serão esquecidas; são como relâmpagos e jorros de uma luz paradisíaca a incidir sobre locais e momentos únicos.
Os aldeões reconstruiram a aldeia, e os objectos que tinham sido salvos, na casa que se tinha salvo, ficaram entre novas casas em cujos jardins novas flores e vegetais germinaram, e novos espécimes foram plantados. O povo começou a contar histórias sobre a vinda dos vermes, montanha abaixo, e também essas histórias eram o oposto do aborrecimento. Tornaram interessantes, excitantes, quase belos, a cinza e o fedor, o esmagar e engolir. As lendas falavam de algumas coisas mas calavam outras. Jack contava a bravura impetuosa de Harry, correndo em direcção ao mar de fumo para salvar o seu porco, mas ninguém falava da tristeza diária provocada pela esperança no seu regresso, que diminuia lentamente. Enalteceu-se o facto de o porco ter tido muita destreza e ter-se conseguido recompor mas não se falou dos maus bocados por que ele teve de passar, naqueles dias tão duros. E estas lendas, construídas a partir do contentamento daquelas pessoas perante a sua própria sobrevivência tornaram-se, com o tempo para os seus filhos e netos, armas contra o aborrecimento e a monotonia estabelecendo uma ligação misteriosa entre a paz, a beleza e o terror."

A. S. Byatt, O caixão de vidro

domingo, 18 de novembro de 2012

"- Os meus amores de um instante valem por amores de um século. Mas, por felicidade, ninguém me segue e eu não tenho tempo de criar essa habilidade a partir da qual se engendra o ciúme. Isso, ria-se! Não tema o devir nem a morte. Nunca se tem a certeza de morrer. Julga então que eu sou o único que não morreu! Lembre-se de Enoch, de Elias, de Empedócles, de Apolónio de Tirana. Será que já ninguém neste mundo acredita que Napoleão continua vivo? E esse desafortunado rei da Baviera, Luís II? Pergunte aos bávaros. Todos afirmarão que o seu rei magnífico e louco vive ainda. Você, você mesmo, não morrerá talvez."

Guillaume Apollinaire, O Heresiarca e C.ª

sábado, 17 de novembro de 2012

"Mas no seu coração acendia-se novo inferno: o mais terrível de todos, aquele onde as serpentes mordem o próprio coração com os dentes aguçados, nele infiltrando a peçonha mais corrosiva: o inferno do ciúme.
Ao ver Anhelete tão fresca e gentil, tão inocentemente feliz, ao vê-la no momento exacto em que ela ia passar a ser pertença de outro, Teobaldo, que havia três meses não pensava sequer nela, que não tinha intenção de cumprir a promessa que lhe fizera, Teobaldo convenceu-se de que nunca deixara de a amar.
Afigurou-se-lhe que Anhelete lhe havia jurado fidelidade ou que Engoulevent lhe estava a arrebatar o que era propriedade sua.
Quase saltou para fora do esconderijo, censurando à jovem a sua traição.
Anhelete, agora que se lhe esquivava, adquiria aos olhos de Teobaldo virtudes, qualidades, vantagens que ele não tinha suspeitado no momento em que, para as possuir, lhe teria bastado uma palavra.
Depois de ter experimentado todas as decepções que tinha experimentado, depois de perder aquilo que ele considerava o seu tesouro, aquilo de que a qualquer momento se poderia apoderar, pois não lhe passava pela cabeça que outro lho pudesse cobiçar, pareceu-lhe a última das partidas do destino.
Por ser mudo, o seu  desespero não foi mais profundamente triste: mordia as mãos, batia com a cabeça no tronco da árvore. Chorava e soluçava.
Mas tais lágrimas e suspiros não eram daqueles que, enternecendo o coração, servem de transição entre um mau sentimento e um bom: não, tais lágrimas e suspiros, então mais inspirados pela fúria e pela raiva que pelo o arrependimento, tais lágrimas e suspiros não lograram expulsar o ódio da alma de Teobaldo.
Até parecia que uma parte das lágrimas se derramava para fora, enquanto outra parte escorria para dentro, caindo-lhe sobre o coração como outras tantas gotas de fel.
Convencera-se de que adorava Anhelete."

Alexandre Dumas, O Lobisomem

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

"Movemo-nos entre generalidades e símbolos, como num campo fechado onde a nossa força se mede utilmente com outras forças; e fascinados pela acção, atraídos por ela, para nosso bem, no terreno que ela escolheu, vivemos numa zona intermédia entre as coisas e nós próprios, exteriormente em relação às coisas, exteriormente em relação a nós próprios. Mas de tempos a tempos, por distracção, a natureza suscita almas mais desligadas da vida. Não falo desse desprendimento deliberado, pensado, sistemático, que é a obra de reflexão e da filosofia. Falo de um desprendimento natural, inato na estrutura do sentido ou da consciência, e que se manifesta sobretudo por uma maneira, de certo modo virginal, de ver, de ouvir ou de pensar. Se tal desprendimento fosse completo, se a alma já não aderisse à acção por nenhuma das suas percepções, seria a alma de um artista como nunca ainda o mundo viu. (...) A sinceridade é comunicativa. O que o artista viu, não voltaremos a vê-lo, sem dúvida, pelo menos completamente tal qual foi: mas se ele o viu deveras, o esforço que fez para afastar o véu impõe-se à nossa imitação. A sua obra é um exemplo que nos serve de lição. E a verdade da obra mede-se precisamente pela eficácia da lição. A verdade traz pois consigo uma força de convicção, de conversão até, que é a marca pela qual a reconhecemos. Quanto maior for a obra e mais profunda a verdade entrevista, mais o efeito se poderá fazer esperar, mas também mais tenderá, esse mesmo efeito a tornar-se universal. A universalidade encontra-se aqui no efeito produzido, e não na causa. O objectivo da comédia é completamente diferente. Nele a generalidade reside na própria obra. A comédia retrata caracteres que encontrámos já e que voltaremos a encontrar, no nosso caminho. Regista semelhanças. Visa mostrar-nos tipos. Se necessário, chegará mesmo a criar tipos novos. E por este aspecto distingue-se das outras artes."

Henri Bergson, O Riso