terça-feira, 27 de dezembro de 2011

-Desculpa mas tenho mesmo que atender esta chamada.
-Sim, claro.
-Olá mãe. Está tudo bem? Já marquei a cirurgia. É dia 3 de Outubro. Sim, eu sei que é o meu aniversário mas é esse o melhor dia porque é uma segunda feira e depois tenho o resto da semana de férias para recuperar. O médico disse que tenho de lá ficar essa noite. Não, é anestesia geral. Vai correr tudo bem, não te preocupes. Não é necessário vires, a sério. Sim, está bem. Sim. Sim. Então vá, até amanhã. Beijinho.
-Vais fazer uma cirurgia?
-Sim. Vou extrair um lipoma. Não é nada grave.
-O que é um lipoma?
-É uma massa de gordura que se aloja numa zona do corpo.
-E em que zona do corpo está o teu lipoma?
-Na região púbica.
-Gostava de ver esse teu lipoma. (sorriso malandro)
-Se o lipoma estivesse em outro sítio até mostrava.
-Por que é que só mostravas se estivesse noutro sítio?
-Não me digas que queres que me dispa aqui no restaurante.
-Não, mas podemos ir para tua casa e mostras lá.
-Não ias gostar de ver. É muito inestético.
-Tenho a certeza que ia gostar de ver.
-Antes de veres o meu lipoma temos muito que conversar.
-Conversemos então.
-Ainda moras em Massamá?
-Sim.
-Com a Soraia e os vossos filhos?
-Sim. O que é que queres saber mais?
-Na verdade não quero saber mais nada.
-Como assim? Não foste tu que disseste que tínhamos muito que conversar?
-Sim, fui. Mas enganei-me. Afinal não há mais nada para conversar.
-Vou-me embora então. Eu sempre soube que não querias ser minha amiga. (zangado)
-Se quisesses ser só meu amigo não querias ir para minha casa ver a minha região púbica.
-Vai p'ró caralho!

quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

"e depois conversei com ela em assuntos só nossos, perguntando, sem resposta, porque lhe deste pernas abertas a cheirar maldade que te sujeitou deus no buraco. bondade que tivesses fugias a casa de teu marido, para te reservares de proximidades só de quem te desposou. porque lhe deste tu oportunidade, minha ermesinda. nem que te cales te perdoo, cada vez menos to aceito, e se nada me contas mais te invento teres feito e mais o imagino e fico louco de to atribuir. e não me dizes mais nada, por deus, se te usasse a língua palavra uma que te salvasse, eu te daria toda a guarida do mundo e, mais que isso, todo o tamanho do meu coração. diz-me, ermesinda, diz-me que coisas te fazia dom afonso, como te fazia e em que diferia, para te merecer todas as manhãs e segredo até de mim. e a minha ermesinda não abria boca. não dizia nada."

valter hugo mãe, "o remorso de baltazar serapião"

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

"Que miséria! Retrocedi vinte anos mas só de alma, infelizmente! Aqui estou eu à espera de uma mulher, embora desde há muito sinta desprezo pelos apaixonados e pelas amantes; de cinco em cinco minutos olho para o relógio e mesmo sem querer ponho-me à escuta, para ver se oiço os seus passos na escada!
Não, não haja dúvidas! Como é difícil de arrancar a pequena flor azul, a erva daninha da alma, e como volta a nascer! Não aparece durante vinte anos e de repente, sem sabermos porquê nem como, dá rebentos, brota em tufos que não conseguimos desenredar! Meu Deus, como sou estúpido!"

J.-K. Huysmans, "Além"

sexta-feira, 18 de novembro de 2011

"Não espero nada. O facto não é horrível. Desde que o resolvi, ganhei tranquilidade."

Adolfo Bioy Casares, "A invenção de Morel"

domingo, 6 de novembro de 2011

"E esta instabilidade tornava-se mais precária ainda porque, nela, duas forças contraditórias agiam sobre mim, lutando por se tornarem hegemónicas. Uma era o instinto de conservação. A segunda, uma força ainda mais profundamente, mais intensamente empenhada na completa desintegração do meu equilíbrio interior, era a tentação do suicídio, esse impulso subtil e secreto ao qual o ser se abandona, por vezes inconscientemente."

Yukio Mishima, "Confissões de uma máscara"

segunda-feira, 24 de outubro de 2011

"Um dia, entre o bosque e a selva de trepadeiras no extremo da lixeira, deparou com dois vultos fornicando no chão. Escondeu-se atrás de uma árvore a espiá-los até que reconheceu uma das filhas. Tentou aproximar-se furtivamente mas o rapaz estava alerta, deu um salto e partiu em corrida pela mata fora levando as calças enquanto fugia. O velhote começou a bater na rapariga com o pau que levava. Ela agarrou-o. Ele perdeu o equilíbrio. Estatelaram-se os dois juntos nas folhas. Um cheiro quente a peixe exalando de entre as pernas da moça. As cuecas cor de pêssego dela penduradas num arbusto. O ar em volta dele tornou-se eléctrico. Quando deu por si tinha as jardineiras pelos joelhos e estava a montá-la. Papá pára, disse ela. Papá. Oooh.
O tipo veio-se dentro de ti?
Não.
Puxou o membro para fora e agarrou-o e esguichou a esporra na coxa dela. Diabos te levem, disse. Levantou-se, puxou as jardineiras para cima e caminhou pesadamente como um urso na direcção da lixeira."

Cormac McCarthy, "Filho de Deus"

domingo, 23 de outubro de 2011

"Então, lembrei-me subitamente de Ylajali. Como pudera esquecer-me dela completamente durante todo o serão? E uma luz ténue voltou a entrar na minha mente, um pequeno raio de sol, que me aquecia tão docemente. E o sol persistiu, uma bela luz suave e acetinada que me acariciava de um modo agradavelmente anestesiante. E o sol tornou-se simplesmente mais forte, ardia-me penetrante nas têmporas, pesado e incandescente, cozia o meu cérebro macilento. E por fim, flamejou diante dos meus olhos uma desatinada fogueira de raios, incendiando céu e terra, pessoas e animais de fogo, montanhas de fogo, demónios de fogo, um precipício, um deserto, todo um mundo em chamas, um fumegante dia derradeiro.
E não ouvi nem vi mais nada..."

Knut Hamsun, "Fome"

sexta-feira, 7 de outubro de 2011

"Se escrever fosse palavras, escrever seria fácil. Escrever é coisa que acontece apesar das palavras. Não há outro processo de acontecer escrever senão com palavras, mas ao mesmo tempo acontece que se escreve apesar delas. O que leva uma pessoa a escrever é a história que as próprias palavras não dizem mas sugerem. É uma coisa assim parecida."

William Saroyan, "Rapazes e Raparigas"

sexta-feira, 30 de setembro de 2011

"Ainda que tivessem soado as trombetas, que fossem entoados cânticos de guerra, ou que do norte chegassem mensagens inquietantes, se fosse apenas isso, Drogo não teria desistido de partir; mas já se apoderara dele o torpor da habituação, a vaidade militar, o amor doméstico pelas muralhas quotidianas. (...) Todas estas coisas se tinham já tornado suas e deixá-las ter-lhe-ia causado desgosto. Drogo, todavia, não o sabia, não suspeitava que a partida lhe teria sido penosa nem que a vida da Fortaleza devorava os dias um após outro, todos semelhantes, a uma velocidade vertiginosa. Ontem e anteontem eram iguais, ele já não seria capaz de os distinguir; um facto ocorrido há três ou há vinte dias acabava por lhe parecer igualmente longínquo. Assim se desenrolava, sem ele se aperceber, a fuga do tempo."

Dino Buzzati, "O Deserto dos Tártaros"

domingo, 11 de setembro de 2011

"Dentre os convidados sobressaíam alguns com características pessoais reconhecidos como heróis da festa. Não faltavam ali as invejas e as intrigas, nem as costumadas pequenas calúnias, sem as quais a Humanidade não pode viver e milhares de indivíduos morreriam de aborrecimento, dada a pequenez da sua imaginação, tal como as moscas sucumbem no Outono."

Dostoievski, "O Pequeno Herói"

sábado, 3 de setembro de 2011

"O machismo português é o machismo, não da força masculina, mas da fraqueza. Não consiste no homem armar-se em agressor, mas em vítima. O logro é este: o homem apresenta-se sempre à mulher como vítima da natureza «de homem», dele. Ser homem, para o machista português, é ser essencialmente fraco. É um não-ser-capaz de resistir às tentações; um envergonhado "já sabes como é, filha» que serve para legitimar todos os privilégios de que goza (aos quais chama «deslizes»). À mulher não se admitem estes abusos - os copos, as entradas às tantas da manhã, os romances - porque o homem português considera a mulher um ser superior. Como é superior - mais forte, mais séria, mais responsável, mais ajuizada - não tem, muito simplesmente, direito a nada."


Miguel Esteves Cardoso, "A Causa das Coisas"

sexta-feira, 2 de setembro de 2011

"Desengane-se de vez a rapaziada. Nenhuma mulher gosta de um homem «experiente». O número de amantes anteriores é uma coisa que faz um bocadinho de nojo e um bocadinho de ciúme. O pudor que se exige às mulheres não é um conceito ultrapassado - é uma excelente ideia. Só que também se devia aplicar aos homens. O pudor valoriza. O sexo é uma coisa trivial. É por isso que temos de torná-lo especial. Ir para a cama com toda a gente é pouco higiénico e dispersa as energias. Os seres castos, que se reprimem e se guardam, tornam-se tigres quando se libertam. E só se libertam quando vale a pena. A castidade é que é «sexy». Nos homens como nas mulheres. A promiscuidade tira a vontade."


Miguel Esteves Cardoso, "As minhas aventuras na República Portuguesa"

quarta-feira, 24 de agosto de 2011

"Ficava desesperado porque não sabia o que aquele olhar queria dizer. Algo entre a indiferença e o desespero, pensava ele. Não sabia que há lugares, como o país donde Rahel vinha, onde vários tipos de desespero competem pela primazia. E que o desespero pessoal nunca poderá ser suficientemente desesperado. Que acontecia algo quando o tumulto pessoal passava pelo santuário da beira da estrada dedicado ao tumulto vasto, violento, envolvente, impulsionador, ridículo, insano, inverosímil e público de uma nação. Que o Grande Deus uivava como um vento quente e exigia obediência. Depois o Pequeno Deus (caseiro e contido, privado e limitado) saía de lá queimado, rindo-se entorpecidamente da sua temeridade. Endurecido pela confirmação da sua própria insignificância, tornava-se resistente e verdadeiramente indiferente. Nada importava muito. Pouco ou nada importava. E quanto menos importava, menos importava. Nunca era suficientemente importante. Porque Coisas Piores tinham acontecido. No país donde ela vinha, oscilando eternamente entre o terror da guerra e o horror da paz estavam sempre a acontecer Coisas Piores."

Arundhati Roy, "O Deus das Pequenas Coisas"

quarta-feira, 27 de julho de 2011

"Para aqueles que se apropriam da aparência de um comportamento «normal», porque não conseguem suportar a tensão das contradições entre a realidade que nos é imposta e o mundo interior, para gente assim, muito rapidamente deixa de haver sentimentos verdadeiros. Em vez disso, operam com conceitos de sentimentos, sem terem com eles ainda alguma experiência. Apresentam sentimentos fingidos como sendo seus e renunciam aos seus sentimentos verdadeiros. Quanto mais «saudável» a imagem da identidade que assumiram, tanto maior será o sucesso dessa manipulação. E é de manipulação que se trata, já que a sua intenção não é exprimirem-se, mas a de convencer o parceiro de que agem, pensam e sentem de uma forma adequada. São estas as pessoas que quero apresentar como as realmente loucas entre nós."

Arno Gruen, "A loucura da normalidade"

segunda-feira, 25 de julho de 2011

"O esforço por sermos aceites pelo que é esperado sermos e fazermos torna-se um mecanismo para iludirmos a ansiedade interior. À medida que o sermos aprovados se torna o sentido da nossa existência, renunciamos à possibilidade de sermos amados pelo que somos realmente. O próprio desejo de sermos amados desta maneira dá azo ao desprezo de nós próprios, porque sermos amados pela nossa sensibilidade significaria vermo-nos designados fracos. Em tais circunstâncias, e como já referi repetidamente, uma criança aprende que o amor apenas pode ser obtido em troca de manobras de obediência. Mas, se fizer as pazes com tal situação, odiará em secreto também os pais. Para poder viver consigo e com a sua necessidade de amor, terá de odiar-se tal como tudo que lhe recorde o amor sincero. Deve ser essa a causa mais profunda da crueldade."

Arno Gruen, "A traição do eu"

quarta-feira, 13 de julho de 2011

"Racionalidade é o que demonstra um leão quando mata um veado para se alimentar, a si e à sua família. Trata dos seus interesses e da sua preservação. Um homem que se lança para dentro de um prédio em chamas para salvar desconhecidos, incluindo animais, se os houver, não age racionalmente. Observo mais razão do que sentimentos na acção de um gato. O social é incompatível com o racional, e a sociabilidade dos homens tem aumentado pelo menos tanto quanto o buraco do ozono. Os seres humanos são dependentes uns dos outros. Cada vez mais dependentes."


Inês Pedrosa, "Os Íntimos"

terça-feira, 12 de julho de 2011

"A tese das almas gémeas é uma fraude, mas é verdade que há uma pequena percentagem de corpos incompatíveis, uma alta percentagem de corpos compatíveis e uma minoria de corpos feitos um para o outro. Quando se tem a sorte de encontrar esse corpo que se funde no nosso como o mar com o horizonte num dia de Verão, isso é a felicidade. Nem o amor nem o sexo servem para definir essa fusão. Trata-se de um fenómeno mais simples e mais complexo, assustador pela sua grandeza. Há quem fuja deste encontro como da peste; se eu me tivesse deitado com Margarida aos vinte anos, teria certamente fugido dela com todas as minhas forças. Nessa época não só não acreditava no amor, como fazia da Liberdade uma espécie de deusa exigente erguida sobre um pedestal altíssimo. Livre sou-o agora, pela primeira vez, quando entro no corpo da Margarida, quando me inebrio com o cheiro e o toque da sua pele e deixo de saber quem sou."


Inês Pedrosa, "Os Íntimos"

quarta-feira, 29 de junho de 2011

"Coragem é sabermos que estamos vencidos à partida, mas recomeçar na mesma e avançar incondicionalmente até ao fim. Raramente se ganha, mas às vezes conseguimos."

Harper Lee, "Por favor, não matem a cotovia"

quinta-feira, 23 de junho de 2011

"E Bloom pensou então nesse caixão público
que são os dias. Em cada dia enterram-se mais de dez mil
pessoas no mundo inteiro. É um dia público,
ordinário, grotesco, impúdico, onde se enterram
[anonimamente
velhos, crianças, mulheres, homens fortes, magros e
[anafados.
Os dias (cada dia) são uma vala comum,
pensava Bloom. Se não têm cuidado
os dias ganham doenças. (Mas sobre a terra, graças a Deus,
cada dia rapidamente cede lugar a outro.)"


Gonçalo M. Tavares, "Uma Viagem à Índia"

segunda-feira, 20 de junho de 2011

"(...) era a única que ainda tinha capacidade de amar, a única para quem o destino alheio continuava a ser tão valioso como o próprio, ou talvez mais, porque era a única para quem, na verdade, a vida não era tão importante que salvar-se fosse a coisa mais importante de todas."


João Tordo, "O Bom Inverno"

quarta-feira, 8 de junho de 2011

"Porém, o mar é uma
parede deitada: embora tenhas essa ilusão não podes
passar através dele.
Se beijares o mar ou se o agredires com um murro, vê:
o que lhe fizeste só em ti tem efeitos. E eis a definição de
um elemento forte."

Gonçalo M. Tavares, "Uma Viagem à Índia"

terça-feira, 7 de junho de 2011

"Ao ver a mulher na sua atitude característica, braços grossos erguidos para a corda da roupa, garupa possante espetada para trás como uma égua, Winston achou-a, pela primeira vez, bela. Nunca antes lhe passara pela cabeça que o corpo de uma mulher de cinquenta anos, monstruosamente inchado por gravidezes e depois endurecido, maltratado pelo trabalho até ficar com a textura áspera de um nabo velho, pudesse ser belo. Mas era-o, de facto; e afinal de contas, pensou ele, porque não? O corpo sólido, sem contornos, semelhante a um bloco de granito, e a pele vermelha, rugosa, estavam para o corpo de qualquer rapariga como o fruto da roseira está para a rosa. Porque é que o fruto haveria de ser menos prezado do que a flor?"

George Orwell, "Mil Novecentos e Oitenta e Quatro"
"«Se estiver a dizer disparates, corrige-me. Mas cada vez mais acredito que só vale a pena ler um romance - neste caso, um bom romance - quando temos uma pergunta na cabeça para a qual não sabemos a resposta. Ou, mesmo que tenhamos encontrado a resposta, se precisarmos de confirmação.»
Fiquei intrigado. Pedi-lhe nova explicação.
«Pensa bem: o mesmo se aplica a escrever livros, ou não? Não será o escritor, verdadeiramente, o único interessado naquilo que escreve? Quero dizer, porquê andar a inventar histórias a torto e a direito, a menos que essas histórias sejam a solução, temporária ou absoluta, para um enigma qualquer?»
«Todos temos enigmas por decifrar», repliquei. «No entanto, nem todos lemos ficção. E somos ainda menos os que a escrevemos.»
«Justamente», respondeu Nina. «Porque pessoas diferentes encontram as respostas em lugares diferentes. Algumas pessoas encontram-nas na própria vida; talvez eu faça parte desse grupo. Para outras, as respostas só surgem quando se disfarçam de outra coisa qualquer, de uma pessoa que não são. Quando se metem no lugar de uma personagem e depois a fazem passar por agruras, que é aquilo que acontece nos romances»"

João Tordo, "O Bom Inverno"

quinta-feira, 2 de junho de 2011

"Quer dizer: não pões de lado a esperança...
O modelo copia o real, sem deturpar. E ela tem esperança; pelo menos, em parte.
Mas tu duvidas.
Não confundo esperança e ilusão.
Estéreis, uma e outra. Como distingui-las?
Pela intensidade."

Carlos de Oliveira, "Finisterra - paisagem e povoamento"

quarta-feira, 1 de junho de 2011

"Tudo necessita de constante atenção e
aperfeiçoamento, até o Eterno. Se o Eterno
é hoje o mesmo que era no século XII então
percebe-se a desligação geral do povo
às orações com frases desactualizadas.
O Eterno cheira a século XII, poderia
gritar um provocador bem informado,
mas o importante é isto: até o imutável
se não mudar será empurrado. O céu, na minha opinião,
tornou-se um lugar parado de mais."

Gonçalo M. Tavares, "Uma Viagem à Índia"

terça-feira, 31 de maio de 2011

"De mãos dadas, aproximámo-nos todos do proscénio para nos curvarmos numa vénia e quando me inclinei, ele levantou-se e falou-me ao ouvido, num tom insistente.
Vai ter comigo lá fora, por favor.
Olhei à volta, precipitadamente, ainda meio à espera de ver outra mulher - uma mulher mais bonita, mais merecedora - dar um passo em frente para escutar a mensagem dele. Mas ele estava a olhar para mim com uma expressão séria nos olhos brilhantes. E quando o fixei, quase me ia esquecendo da mão quente e nervosa do actor ao meu lado, vi-o assentir com a cabeça como que em resposta a uma muda interrogação.
Eu?
Sim, tu."

Joanne Harris, "Danças & Contradanças"

domingo, 29 de maio de 2011

"Ela riu-se. Dei-lhe um beijinho, apalpando-lhe o cu. Então, voltei para a sala com a minha bebida, sentei-me, estiquei as pernas, suspirei.
Podia ficar aqui, pensei, fazia dinheiro nas corridas e ela tomava conta de mim nos momentos maus, espalhava óleos no meu corpo, cozinhava para mim, falava comigo, ia para a cama comigo. Havíamos de ter discussões, como é óbvio. É essa a natureza da Mulher. Elas gostam do intercâmbio de roupa suja, um bocadinho de gritaria, um bocadinho de drama. Depois, uma troca de juras. Eu não era muito bom na troca de juras.
Estava a ficar entusiasmado. Na minha imaginação, eu já me tinha mudado para ali."

Charles Bukowski, "Correios"

sábado, 28 de maio de 2011

"O mais engraçado, no meio disto tudo, é que eu estava a pensar noutra coisa enquanto lhe dava música. Vivo em Nova Iorque, e estava a pensar na lagoa no Central Park, perto de Central Park South. Perguntava a mim mesmo se estaria gelada quando eu voltasse para casa, e, se estivesse, para onde é que iam os patos. Perguntava a mim mesmo para onde vão os patos quando a lagoa fica toda gelada, com uma camada de gelo por cima. Perguntava-me se haveria algum tipo que vinha com um camião e os levava para um zoo ou coisa assim. Ou se simplesmente voavam para qualquer sítio."

J. D. Salinger, "À Espera no Centeio"

sexta-feira, 27 de maio de 2011

"Os festejos são assunto táctil,
a alegria só é sonora para o exterior,
mas nada é feliz com a cabeça de fora.
O júbilo sai sem um único som acompanhando.
O som é o elemento falso das coisas.
Falar, cantar, fazer barulho disforme,
tudo faz parte de um anexo do corpo,
pois tu és um organismo interior, caro Bloom,
bem como todos os humanos. Sentir não tem som,
isso é mais que evidente."

Gonçalo M. Tavares, "Uma Viagem à Índia"

quinta-feira, 26 de maio de 2011

"E depois, com ou sem casamento, embora o casamento sempre apresse as coisas, aquele que foi um Rodolfo, e se tornou num Léon, transforma-se em Bovary. Engorda. Limpa os dentes com a língua. Faz barulho quando engole a sopa. É desajeitado e ignorante. É grosseiro e até de costas é irritante. Ao princípio, isto enerva-te simplesmente; no fim, põe-te doida. O príncipe que te salvou da tua aborrecida existência é agora o porco no âmago da aborrecida existência. Chato, chato, chato. E depois a catástrofe. De uma maneira ou de outra, seja qual for o seu trabalho, ele faz asneiras colossais no emprego. Como o pobre do Carlos com Hipólito. Parte para o equivalente a extrair um calo a alguém e provoca-lhe gangrena. O homem que foi perfeito é um falhanço desprezível. Eras capaz de matá-lo. A realidade triunfou sobre o sonho."

Philip Roth, "Traições"

quarta-feira, 25 de maio de 2011

"O que aconteceu na história é que ela está semeada de desastres, e quando se estuda história vai-se de desastre em desastre e fica-se ansioso pelo seguinte, e tem-se passos para o abismo, e há datas e conceitos, e aprendem-se, e depois passa-se o exame. O sarilho da vida é que não se sabe na verdade se isto é um processo descendente. O sarilho com a vida é que não se sabe de todo o que de facto se passa."

Philip Roth, "Traições"

quarta-feira, 18 de maio de 2011

"Sim, é verdade que o comércio meteu a Natureza
em caixas com um preço. Mas tal não é terrível nem
sequer desagradável. Bem pior são certas crianças
que arrancam uma das patas a um sapo que teve o azar
de servir de objecto aos exercícios ingénuos de seres vivos
com seis anos. Entre ser vendida inteira
por comerciantes careiros ou ser fragmentada por crianças
que não sabem o valor do dinheiro, a Natureza
optará sempre pelo pacífico capitalismo.

Porque o capitalismo sabe que uma mercadoria
sem uma das patas vale menos:
por isso não arranca patas ou orelhas,
ou cabeças inteiras à dentada. Mas se valesse mais até
arrancavam
uma das patas da Torre Eiffel - exclamou Jean M.
Não te iludas com monumentos nem com cerimónias.
A estética terminou. Ficou o dinheiro.
Os homens são génios do bem para o ouro,
génios do mal para a paisagem."


Gonçalo M. Tavares, "Uma Viagem à Índia"

terça-feira, 17 de maio de 2011

"Os sofrimentos
não são todos da mesma espécie animal:
de uns, sais aperfeiçoado - pensa Bloom -,
de outros, canino e obediente."

"só existe idade madura no corpo que
atravessou uma doença ou a compreendeu."


Gonçalo M. Tavares, "Uma Viagem à Índia"

segunda-feira, 16 de maio de 2011

"(...) tenha suficiente amor-próprio para não conceder o amor da totalidade do coração, da alma e da força, quando uma tal dádiva não é desejada e até seria desdenhada."

Charlotte Brontë, "Jane Eyre"

domingo, 15 de maio de 2011

"Hoje, quando rememoro essas cenas, apetece-me rir dela e de mim. É bom sinal. Como se, ao longo destes anos, tivesse aprendido alguma coisa do emaranhado das nossas pulsões, dos nossos pequenos e grandes gestos, dos rasgos dramáticos, até patéticos, que mais tarde deploramos. Que se nos afiguram alheios ao nosso verdadeiro ser, a essa entidade movediça, sempre em transformação que é o nosso ser. Para lá dos gritos do instinto, tudo, creio bem, mesmo o amor, tudo é comédia."


Urbano Tavares Rodrigues, "O Eterno Efémero"

sábado, 14 de maio de 2011

"Falar (ou mesmo escrever) entretém,
pode convencer, seduzir - mas jamais resolve."

"As palavras, por exemplo, não são práticas nem úteis,
enrolam-se nos dedos, interferem nos factos.
Quando muito explicam - mas tal não é solução."


Gonçalo M. Tavares, "Uma Viagem à Índia"

quarta-feira, 11 de maio de 2011

"O sentimento sem nenhum discernimento é, certamente, como uma corrente de ar que depressa passa, mas o discernimento que não é temperado com sentimento é um alimento demasiado amargo e grosseiro para a deglutição humana."

Charlotte Brontë, "Jane Eyre"

terça-feira, 10 de maio de 2011

"Está com frio, porque está sozinha: não tem nenhum contacto que acenda o fogo que tem dentro de si . Está doente, porque os melhores sentimentos, os mais elevados e doces dados ao ser humano, se mantêm afastados de si. É estúpida porque, por mais que sofra, é incapaz de fazer um sinal para que esses sentimentos se aproximem de si, nem daria um passo para os encontrar onde eles estão à sua espera."

Charlotte Brontë, "Jane Eyre"

domingo, 1 de maio de 2011

"Nenhum homem é imortal - declarou em voz baixa. - Todos devemos a morte a Deus"

"Aves de Rapina", Wilbur Smith

sábado, 30 de abril de 2011

"Uma garrafa de vinho por dia, dois versos;
uma investida erecta no bordel principal da cidade,
mais verso, verso e meio, no regresso a casa,
sair (depois) à janela
para insultar os burgueses que passam,
eis como se diverte um poeta."


Gonçalo M. Tavares, "Uma Viagem à Índia"

sexta-feira, 29 de abril de 2011

"Perdoar é compreender."

José Eduardo Agualusa, "Barroco Tropical"

quinta-feira, 28 de abril de 2011

"Entre ameaças que fazia e recebia,
algumas - devido ao mau funcionamento dos transportes
da época -
chegavam com dias de atraso
- facto que muitas vezes tornava
as ameaças desactualizadas.
Afinal já não lhe queriam arrancar a pele,
mas sim um ou dois órgãos internos; coisas assim.

Porém, apesar do sistema de fracas comunicações,
o ódio desenvolveu-se. Se até no tempo dos Romanos
havia exércitos inteiros que não simpatizavam entre si,
quanto mais em tempos recentes.
É que o ódio não necessita de grande tecnologia de suporte:
bastam duas mulheres para um único homem, ou dois
homens para um único território."


Gonçalo M. Tavares, "Uma Viagem à Índia"

quarta-feira, 27 de abril de 2011

"E eis o que é evidente: há mais inimigos
em tempo de paz do que em tempo de guerra.
Em tempo de paz cada exército
tem uma dimensão familiar, por exemplo,
sete elementos (no caso de um casal
com cinco filhos) e o resto são inimigos.
São as minhas contas;
que posso fazer? - há muito perdi a ingenuidade."


Gonçalo M.Tavares, "Uma Viagem à Índia"


terça-feira, 26 de abril de 2011

"Achei que podia fugir do amor. Enganei-me. O amor é um cão velho e tinhoso, porém obstinado, que nunca desiste. Abandonamo-lo no mato, para morrer de fome e de sede, para morrer de frio, porque queremos que morra, e dias depois ele está de regresso a casa, a abanar a cauda. Enxotamo-lo à pedrada, mas volta sempre."

José Eduardo Agualusa, "Barroco Tropical"

sexta-feira, 22 de abril de 2011

"Uma noite de lua pálida e gerânios
ele virá com a boca e mão incríveis
tocar flauta no jardim.
Estou no começo do meu desespero
e só vejo dois caminhos:
ou viro doida ou santa.
Eu que rejeito e exprobro
o que não for natural como sangue e veias
descubro que estou chorando todo o dia,
os cabelos entristecidos,
a pele assaltada de indecisão.
Quando ele vier, porque é certo que vem,
de que modo vou chegar ao balcão sem juventude?
A lua, os gerânios e ele serão os mesmos
- só a mulher entre as coisas envelhece.
De que modo vou abrir a janela, se não for doida?
Como a fecharei, se não for santa?"


Adélia Prado

quinta-feira, 21 de abril de 2011

"Sou mulher, sou Marta e só posso escrever. Afinal, talvez seja oportuna a tua ausência. Porque eu, de outro modo, nunca te poderia alcançar. Deixei de ter posse da minha própria voz. Se viesses agora, Marcelo, eu ficaria sem fala. A minha voz emigrou para um corpo que já foi meu. E quando me escuto nem eu mesma me reconheço. Em assuntos de amor só posso escrever. Não é de agora, sempre foi assim, mesmo quando estavas presente.
E escrevo como as aves redigem o seu voo: sem papel, sem caligrafia, apenas com luz e saudade. Palavras que, sendo minhas, não moraram nunca em mim. Escrevo sem ter nada que dizer. Porque não sei o que te dizer do que fomos. E nada tenho para te dizer do que seremos. Porque sou como os habitantes de Jesusalém. Não tenho saudade, não tenho memória: meu ventre nunca gerou vida, meu sangue não se abriu em outro corpo. É assim que envelheço: evaporada em mim, véu esquecido num banco de igreja."


Mia Couto, "Jesusalém"

quarta-feira, 20 de abril de 2011

"Aos poucos, Dordalma se enclausurou num mundo só dela, triste e calada como a bravia pedra."

"Quem perde a esperança foge. Quem perde confiança esconde-se."


Mia Couto, "Jesusalém"

terça-feira, 19 de abril de 2011

"O que a memória ama, fica eterno.
Te amo com a memória, imperecível"


"Eu quero uma licença de dormir,
perdão pra descansar horas a fio,
sem ao menos sonhar
a leve palha de um pequeno sonho.

Quero o que antes da vida
foi o sono profundo das espécies,
a graça de um estado.
Semente.
Muito mais que raízes."


Adélia Prado