segunda-feira, 14 de setembro de 2015

"E, no entanto... se pudesse ter-se dado o caso de voltarem outra vez àquele inocente e venturoso estado que perderam; se alguém os tivesse consultado, perguntando-lhes: «Quereis voltar a ele?», ter-lhe-iam respondido resolutamente que não. A mim, diziam-me: «Bom, seremos mentirosos, maus e injustos; sabemo-lo e lamentamo-lo, e essa é a nossa tortura, e talvez por isso nos atormentemos e castiguemos mais do que faria esse Juiz misericordioso que há-de julgar-nos no futuro, mas cujo nome nos é desconhecido. Mas, em compensação, possuímos a ciência, e graças a ela havemos de tornar a encontrar a verdade, e então aceitá-la-emos já com consciência. O saber está acima do sentimento; o conhecimento da vida... acima da própria vida. A ciência há-de tornar-nos omniscientes; a omnisciência conhece todas as leis, e o conhecimento da lei da felicidade... está acima da própria felicidade.» Era assim que eles me falavam e, a avaliar por tais palavras, cada um deles se tornara mais apreciador de si próprio que dos outros e se valorizava a si próprio mais que tudo no mundo; sim... e não poderia ter sido de outro modo."

Fiódor Dostoiévski, O sonho dum homem ridículo

quarta-feira, 9 de setembro de 2015

"Um homem que pensa que tudo o que não percebe deve ser desonesto e que, na primeira oportunidade que tiver, está moralmente obrigado a dizer a terceiros o que não tem nada que contar. Como eu digo, se eu pensasse, de cada vez que um homem fizesse qualquer coisa que eu não percebesse, que ele tinha de ser desonesto, creio que não tinha trabalho algum em encontrar naqueles livros, lá no fundo, qualquer coisa em que não se visse alguma utilidade em ir dizer a alguém o que eu pensasse que eles deveriam saber, sobretudo quando tenho alguma razão em suspeitar que eles poderiam saber mais do que eu, e, se o não soubessem, eu não teria nada com isso."

William Faulkner, O Som e a Fúria

domingo, 23 de agosto de 2015

"- Não é a verdade que é sagrada, mas a procura da nossa própria verdade! Haverá acto mais sagrado do que a  auto-inquirição? A minha obra filosófica, dizem alguns, está construída sobre areia: os meus pontos de vista mudam constantemente. Mas uma das minhas máximas é: Transforma-te em quem és. E como descobrir quem e o que se é sem a verdade?"

Irvin D. Yalom, Quando Nietzsche Chorou

sexta-feira, 21 de agosto de 2015

"- Reparte comigo depressa. E caluda, ouviste?...
Foi numa ocasião destas que Gaitinhas o encontrou.
- Deixa o rapaz.
- Põe-te a mexer, Gaitinhas...
- Se o deixares, dou-te estas nozes e figos.
Gineto parou a fitá-lo, embasbacado. Ainda nenhum repartira com ele, sem pesar. E pela segunda vez Gaitinhas lhe desarmava a maldade. Foi na feira, quando o avisou de que o pai lhe queria bater, e agora, ali...
- Obrigado - murmurou, largando o outro garoto.
Subiram os dois a ladeira do Mirante e foram sentar-se no morro.
- Toma figos - ofereceu Gaitinhas.
- Eu tenho.
- Então para que roubavas?
- Sei lá.
Gineto não quis confessar que não pedia porque o escorraçavam das portas, chamando-lhe ladrão e vadio. Nunca mais esqueceria a tareia que, há um ano, apanhara das mãos do Sr. Castro. Entrara confiante no jardim: - Pão, por Deus...
- Toma lá, rapaz...
E as pancadas deixaram-lhe marcas no corpo, apenas porque apedrejara o caseiro quando fora assaltar a Quinta Alta.
Talvez por isso, por esse castigo cobarde e tardio, é que ele andava assim a escorraçar os garotos com mais sorte.
- Gaitinhas: és meu amigo?
- Sou, pois.
Gineto sorriu. Nunca tivera um amigo assim. Os outros adulavam-no por medo, bem sabia. A não ser o Sagui, todos lhe queriam mal, embora o respeitassem.
Gaitinhas tirou do bolso a gaita de beiços e pôs-se a tocar uma canção em voga, que o companheiro ouviu, embevecido. Não percebia nada de música; mas aquela canção era, decerto, a mais bela do mundo. Sumia-lhe as cicatrizes que o pai do Arturinho lhe deixara no corpo e na alma, e levaram-no para braços amigos que jamais conhecera.
- É bestial, pá! - foi só o que soube dizer, quando Gaitinhas findou.
Pela ladeira do Mirante, a noite ia descendo, devagar. E, devagar, um sentimento bom despontava no peito do Gineto. O silêncio da tarde convidava a confidências. Contaram-nas. Como velhos amigos, descreveram a história das suas vidas curtas, sem história."

Soeiro Pereira Gomes, esteiros

quarta-feira, 15 de julho de 2015

"Um sonho rico e fecundo, visto através de uma luz mística. Eu tinha mergulhado até aquele nível perigoso onde, por puro êxtase e encanto, volta-se ao fungo primário. Eu sabia, embora de maneira nebulosa, sonolenta e estonteante, que devia fazer um esforço hercúleo para retornar à tona. A luta era tremenda, agonizante, formidável. De vez em quando eu conseguia abrir os olhos: e via o meu quarto como que através de um nevoeiro, mas sentia que o meu corpo continuava mergulhado nas profundidades marítimas. Tornar a desmaiar era uma sensação voluptuosa. Eu caía sem parar, sem alcançar o fundo que não tinha fundo e onde, eu mesmo, estava esperando por mim como um tubarão esfomeado. Depois, muito lentamente, recomeçava a subir, a voltar à tona. Era um verdadeiro martírio. Era de cortiça, mas não podia nadar. Quase ao chegar à tona, mergulhava outra vez, arrastado para baixo, cada vez mais para baixo, num desamparo delicioso, sugado por um redemoinho, para ficar aguardando, lá bem no fundo, pela passagem de um tempo quase sem fim - a fim de que a vontade criasse novas forças capazes de me devolverem à tona como se eu fosse uma bóia afundada."

Henry Miller, dias de clichy

quinta-feira, 25 de junho de 2015

OS CHIFRES DE CA MELO

"Cer Vo era um animal amargurado e mortificado pelo seu aspecto de todo comum, ou, antes, grosseiro. Que era que distinguia Cer Vo de qualquer outro animal dotado de quatro patas e de uma cauda? Nada, absolutamente nada, nem mesmo a cor, o vulgar marron, tipo cão que foge.
Ora, certo dia foi anunciado o grande baile dos animais providos de chifres. Cer Vo gostaria de ir, mas, ai de mim!, era um animal tão comum, tão comum, que não tinha sequer um chifre ou dois em qualquer parte da cabeça. Em resumo, se não fosse pelo seu tamanho, Cer Vo poderia ser facilmente confundido por uma vulgaríssima ovelha. Convirá, porém, saber que naquela época Ca Melo, animal ainda hoje pleno de originalidade, tinha dois magníficos chifres com vários galhos e com ramificações em todos os sentidos.
Ca Melo não ia ao baile dos «cornudos» porque apanhara uma ponta de ar na sua bossa anterior. Cer Vo foi ter com ele e disse-lhe logo, sem muitas cerimónias:
- Gostaria muito de ir a este baile dos animais com chifres. Mas, infelizmente, não tenho chifres. Empresta-me os teus até amanhã. Amanhã de manhã trago-tos, palavra de ruminante!
Ca Melo era um daqueles indivíduos que preferem dar um desgosto a si mesmos do que um prazer a outro. Por isso, respondeu secamente:
- Nem por sonhos! Os chifres, preciso deles e não os empresto.
- Aluga-mos. Em troca dou-te um molho de feno de primeira qualidade.
- Por amor de Deus. E depois? Passo a ser o alugador de chifres?
- Mas se não vais ao baile, que falta te fazem?
- Servem-me para coçar a pança. E asseguro-te que tenho nisso um grande prazer.
- Porque não coças a pança com o casco e me dás os chifres a mim?
- Não, os chifres não são para emprestar. Não faltaria mais nada. Cada um tem os seus. E quem não os tem, deve passar sem eles.
- Cer Vo compreendeu, nesta altura da conversa, que com o ataque, por assim dizer, frontal não iria conseguir nada. E pensava em tornear o obstáculo. Sabia que Ca Melo era de uma vaidade apenas igual ao seu egoísmo. Por isso, respondeu:
- Mas tu não tens necessidade dos chifres, porque já és, quer o saibas ou não, o animal mais original de toda a criação. Tens duas bossas - um autêntico insulto ao pobre dromedário, que tem apenas uma; tens as pernas finas, que sustentam uma grande pança além das bossas já referidas; tens olhos enormes, lânguidos e reflexivos, com pestanas tão compridas que parecem fingidas; tens uma cauda com um longo tufo de pêlos; tens umas narinas tão grandes que se pode espetar nelas uma maçã de tamanho médio; tens uma cor de pêlo bem conhecida pela cor de pêlo de camelo. E qual é o animal que se ajoelha e reza ao Senhor antes de se erguer da terra e empreender uma longa caminhada através do deserto?
»Mesmo sem chifres, tu és o animal mais extraordinário do mundo; enquanto eu, que sou? Nada, absolutamente nada, não tenho sequer um par de vulgaríssimos chifres.
Ca Melo retorquiu:
- Sim, é verdade, mas os chifres fazem falta à estética da minha cabeça. Que seria a minha cabeça sem chifres? Não vês que a minha cabeça exige chifres?
- Haveria muito a dizer - rebateu o outro - quanto ao facto de os teus chifres serem necessários à estética da tua cabeça. Mas admitamos, por um momento, que isso seja verdade. Infelizmente, porém, se são úteis à estética da cabeça, são, pelo contrário, prejudiciais à do corpo. Não vês que o seu peso foi, pouco a pouco, transformando o pescoço num «esse» ou, se preferes, numa serpente? Imagina como, sem esse peso dos chifres, o pescoço se te endireitaria! Ficarias com um belo pescoço, direito como o do cavalo!
- Mas como sei eu se ficarei melhor sem chifres ou com o pescoço direito? - respondeu Ca Melo. Há coisas que têm de ser vistas primeiro, não se podem imaginar. Pode até acontecer que, sem chifres, me dê conta de ficar semelhante à tartaruga, que é, notoriamente, o animal mais feio do universo.
Cer Vo, surpreendido, inquiriu:
- Que tem a tartaruga a ver, agora?
- Disse isso por dizer.
- Bem. Eu, então, digo, também por dizer, que tu tens tudo a ganhar em tentar a experiência. Até porque, além do mais, não me ofereces os chifres, emprestas-mos.
- E como farei para os reaver?
- É muito simples. No dia seguinte ao da festa, irei ao rio, quando lá estiveres para fazeres a tua habitual beberagem quotidiana; e restituir-tos-ei tal como os recebi. Só te peço que, se me atrasar, me esperes: é sabido que, depois de uma festa, se dorme até mais tarde, de manhã.
Em suma, tanto fez e disse que Ca Melo, por fim, tirou os chifres e deu-lhos. Cer Vo pô-los na cabeça e, observando-se ao espelho, viu que lhe ficavam a matar. Todo contente, correu para a festa.
No que respeita à festa, pois, podem imaginá-la perfeitamente, se vos disser que estavam presentes, sem excepção, todos os animais providos de chifres. Admiravam-se chifres de todos os feitios e de todos os tamanhos; mas os mais bonitos de todos eram, sem dúvida, os de Cer Vo. Tão bonitos que, ao ver aqueles chifres realmente fascinantes, uma tal An Tílope se apaixonou loucamente por ele. Dançaram juntos todas as danças, da primeira à última; os seus chifres viam-se em toda a parte acasalados, no bar e na sala, no jardim e nos salões, escada abaixo e escada acima, dentro e fora dos quartos de cama da grande villa em que se efectuava o baile.
Por fim, An Tílope disse que, se não se casassem rapidamente, ela se mataria com o desgosto. E Cer Vo, que, de resto, estava igualmente apaixonado, aceitou com entusiasmo a ideia do matrimónio.
Assim, depois do baile, nem foram sequer a casa. Esperaram, dançando, que chegasse a manhã, e, do baile, seguiram directamente para a igreja, onde o reverendo Cabrito-Montês os uniu pelos laços regulares do matrimónio.
Os dois noivos foram viver numa belíssima casinha, ao fundo de um bosque. Mas havia agora qualquer coisa que impedia Cer Vo de ser feliz: o compromisso que assumira com Ca Melo de lhe restituir os chifres, logo que a festa acabasse. Que fazer? Por um lado, não havia dúvida de que fizera essa tal promessa a Ca Melo; por outro, porém, o que diria An Tílope mal descobrisse que Cer Vo, na verdade, não tinha chifres, aqueles chifres que, justamente, tanto tinham contribuído para a fazer apaixonar?
Cer Vo reflectiu muito e, por fim, decidiu não restituir os chifres ao legítimo proprietário. E, deste modo, ficou Ca Melo sem chifres. Talvez seja por isto que, quando Ca Melo vai beber ao rio, o faça muitíssimo lentamente, olhando à volta durante todo o tempo: espera sempre que Cer Vo chegue e lhe entregue os chifres."

Alberto Moravia, Fábulas Proibidas

domingo, 21 de junho de 2015

"A actividade muscular de um cidadão que trata durante todo o dia da sua vida é consideravelmente superior à de um atleta que, uma vez ao dia, levanta um enorme peso. Isto foi confirmado pela fisiologia, o que nos permite dizer que até as pequenas acções da vida quotidiana, na sua soma social e pela possibilidade que têm de ser somadas, produzem mais energia do que as acções heróicas; perante isso, as acções heróicas acabam por parecer mesmo absolutamente irrisórias, como um grão de areia colocado, num gesto de tremenda ilusão, sobre uma montanha. A ideia agradava-lhe.
Mas temos de acrescentar que ela não lhe agradava pelo facto de ele apreciar a vida burguesa; pelo contrário, o que lhe agradava era apenas contrariar as suas inclinações, que em tempos tinham sido outras. Talvez seja precisamente o homem comum que intui o começo de um novo e colossal heroísmo colectivo, semelhante ao das formigas. Um dia vão chamar-lhe heroísmo racionalizado, e será objecto de grande admiração. Mas quem é que, hoje, poderá saber uma coisa dessas? Questões como esta, sem resposta e da maior importância, havia-as antes às centenas. Andavam no ar, queimavam-nos os pés. Os tempos estavam a mudar. As pessoas que nessa altura ainda não eram vivas não vão acreditar, mas já então, e não apenas hoje, o tempo corria à velocidade de um camelo. A diferença é que antes não se sabia para onde ele corria. E também não era possível distinguir o que estava em cima e o que estava em baixo, o que avançava ou recuava. «Podemos fazer o que quisermos», pensou o homem sem qualidades, encolhendo os ombros. «No meio de toda esta confusão de forças, isso não tem a mínima importância!»"

Robert Musil, O homem sem qualidades

sábado, 20 de junho de 2015

"Uma vez ouvi um norte-americano definir a fé da seguinte maneira: «É essa faculdade que nos permite acreditar em coisas que sabemos não serem verdade.» Por uma vez, segui esse homem. Ele quis dizer que devemos ter o espírito aberto, e não permitir que um pequeno pedaço da verdade interrompa a torrente da grande verdade, tal como uma pedra pode fazer descarrilar um comboio. Primeiro obtemos a pequena verdade. Ótimo! Guardamo-la e avaliamo-la, mas ao mesmo tempo não devemos permitir que ela mesma se julgue toda a verdade do universo."

Bram Stoker, Drácula, 1897

terça-feira, 2 de junho de 2015

"A perigosa intuição de Platão para os temas perigosos encontra o ponto cego de toda a pedagogia e política da alta cultura: a desigualdade efectiva dos homens ante o conhecimento dá lugar ao poder. Sob a forma lógica de um exercício grotesco da definição, o diálogo do Político desenvolve o preâmbulo de uma antropotécnica política; nele não se trata já de dirigir, domesticando-o, um rebanho já dócil, mas de criar sistemática e repetidamente exemplares humanos mais próximos do seu estado ideal. O exercício começa de maneira tão cómica, que até o seu final, que o é muito menos, também poderia facilmente suscitar riso. Que é mais grotesco que uma definição da arte do Estado como uma disciplina que teria que ver com o andar a pé dos seres que vivem em rebanho (pois é bem sabido que os condutores de homens não exercem a criação de animais aquáticos, mas de animais que andam sobre terra)? Entre estes há que separar os alados dos não alados e caminhantes, para se poder chegar às populações humanas, que, como é sabido, carecem de asas e plumas. Então, continua dizendo o Estrangeiro, este mesmo povo pedestre sob o domínio da natureza, de novo se divide claramente em dois grupos: «uns, sem cornos, os outros, com cornos». Uma coisa destas, o interlocutor inteligente não precisa que lha digam duas vezes. A ambos os grupos correspondem igualmente dois tipos de arte da pastorícia: pastores para rebanhos de animais que têm cornos, e pastores para rebanhos que os não têm. Seria assim evidente que só se encontrará o verdadeiro condutor dos grupos humanos eliminando os pastores dos animais com cornos. Pois se se quisesse custodiar os homens com pastores de animais com cornos, que mais se poderia esperar do que abusos por parte dos ineptos aparentemente aptos? Por conseguinte, os bons reis ou basileioi, diz o Estrangeiro, apascentam um rebanho sem cornos (Politikós, 265d). Mas isto não é tudo: é ainda sua tarefa cuidar dos seres viventes sem misturar, isto é, criaturas que não copulem fora da sua espécie, como costumam fazer por vezes cavalos e burros. Deverão então velar pela endogamia, e buscar meios de impedir a mestiçagem. Se agregarmos a estes implumes, descornados, endógamos, por último, o carácter bípede, estará seleccionada a arte do guardião, aplicada a bípedes implumes sem cornos, surgidos de acasalamentos sem mistura, como a arte verdadeira, contraposta a todas as outras competências. Esta arte da pastorícia preventiva, deverá por seu turno ser subdividida em tirânica-forçada e livre. Se eliminarmos agora a forma tirânica como falsa e enganosa, o que resta será a arte estatal autêntica, definida como «a guarda voluntária de bípedes voluntários» (Politikós, 276e)."

Peter Sloterdijk, Regras para o parque humano

quarta-feira, 27 de maio de 2015

"Desde que trabalhava com o Führer, James tinha aprendido que a confiança entre criminosos aumentava quanto mais alto se subia. As hipóteses de um passador de rua tentar enganar outro num pequeno negócio de droga eram altas. Mas um negócio de armas no valor de meio milhão de libras entre o Führer e a máfia chinesa para quem os Xu trabalhavam era feito à confiança, porque as consequências de qualquer disputa seriam devastadoras para ambos os lados."

Robert Muchamore, Tsunami

domingo, 24 de maio de 2015

"Claro que a ideia de liberdade é sempre definida de modo grosseiro. Como lembra Fourier: "Quando o rei Luís XVI, bloqueado nas Tulherias pelos partidários da Convenção, era obrigado a assinar todos os decretos que lhe punham à frente" foi feita uma gravura que "o representou fechado na prisão, com as mãos fora das grades, a escrever: Sou livre". (Fourier, Charles - Fourier. Escolha de textos, tradução, prefácio e notas de Ernesto Sampaio, 1996, p. 58, Salamandra)"

Gonçalo M. Tavares, Atlas do corpo e da imaginação

quarta-feira, 20 de maio de 2015

Na rua


- Boa tarde. Somos jornalistas da SIC e gostaríamos que respondesse a uma pergunta para o programa "Dá cá mais 5".
- Não respondo.
- São só dois minutos.
- Não é uma questão de tempo.
- Então por que motivo não quer responder?
- Tenho vergonha.
- Não tenha.
- Pois, mas tenho. Se errar sei que toda a gente vai gozar comigo.
- Não vão nada. Não se preocupe com isso.
- Vão sim. Não vale a pena atirar-me areia para os olhos. Vivo em Portugal há 62 anos. Sei bem o que a casa gasta.
- Com essa idade já não devia preocupar-se com o que as outras pessoas pensam, não acha?
- O que eu acho é que todos vão gozar comigo se errar e eu não gosto que gozem comigo. Não respondo. Encare a minha atitude como uma forma de protesto. Vivemos numa democracia. Tenho direito a protestar.
- Sim, mas...
- Ouça, não vale a pena insistir. Tenha uma boa tarde. Com licença.
- Pronto. Boa tarde para si também.

terça-feira, 19 de maio de 2015

"Como defende Novalis, o papel do artista, do criador, é unir "sem cessar extremos opostos" e "quanto mais opostos melhor". Unir sem cessar pressupõe unir coisas desunidas, desligadas, e quanto mais afastadas, quanto mais improvável a sua ligação, melhor. Digamos que há ligações colectivas, ligações previsíveis, ligações não imaginativas, ligações que ligam coisas próximas, e, do outro lado, ligações individuais, privadas, no sentido em que não pertencem a mais ninguém e não são copiáveis, são surpreendentes; ligações que só podem ser feitas por indivíduos livres, desligados de fórmulas fixas, porque estas emperram, colocam-se à frente da imaginação e impedem o seu funcionamento.
Ver as coisas do mundo desligadas entre si é um ponto de partida para a imaginação, como se viu atrás. Se tudo está desligado, tudo pode ser ligado, sem qualquer ordem pré-definida."

Gonçalo M. Tavares, Atlas do corpo e da imaginação

segunda-feira, 18 de maio de 2015

"mesmo se não o clamava abertamente, começava já a revestir os meus pensamentos de acordo com as exigências absolutas da publicação, em atenção a mim, e da recepção, em atenção aos outros."

Imre Kertész, A Recusa

sábado, 16 de maio de 2015

"Eu, porém, não sabia se o entendia bem, porque era possível que eu entendesse nele só o que sabia de mim."

Vergílio Ferreira, aparição

quinta-feira, 14 de maio de 2015

"Aí, Maedhros sarou com o tempo, pois o fogo da vida era forte nele e a sua força era do mundo antigo, a força que possuíam os que tinham sido criados em Valinor. O seu corpo recuperou do tormento e tornou-se saudável, mas a sombra da dor sofrida ficou-lhe no coração; e ele viveu para brandir a espada com a mão esquerda, mais mortalmente do que fizera com a direita. Com este feito ganhou Fingon grande renome, e todos os Noldor o louvaram; e o ódio entre as casas de Fingolfin e Fëanor foi apaziguado, pois Maedhros pediu perdão pela deserção em Araman e prescindiu da sua reivindicação de soberano de todos os Noldor, dizendo a Fingolfin: «Se não houvesse nenhuma ofensa entre nós, senhor, mesmo assim a soberania vos pertenceria com justiça, já que sois aqui o mais velho da casa de Finwë e não o menos sábio.» Mas com isso nem todos os seus irmãos concordaram, nos seus corações."

J. R. R. Tolkien, O Silmarillion

terça-feira, 12 de maio de 2015

"É o reflexo da minha cara. Muitas vezes, nestes dias perdidos, fico a contemplá-lo. Não percebo nada desta cara. As dos outros têm um sentido. A minha, não. Nem posso decidir se é bonita ou feia. Acho que é feia, porque mo disseram. Mas não é propriedade que me salte à vista. A bem dizer, até me surpreende que se lhe possam atribuir qualidades desse género, como se se chamasse bonito ou feio a um bocado de terra ou a um bloco de rocha.
Há, todavia, uma coisa cuja vista dá prazer; por cima das regiões moles das faces, acima da testa: é esta bela labareda vermelha que me doura o crânio, são os meus cabelos. Isto sim, é agradável de se ver. É, pelo menos, uma cor nítida: estou contente por ser ruivo. Ali está ela, no espelho, salta aos olhos, irradia fogo. Muita sorte tenho eu: se a minha testa suportasse uma dessas cabeleiras sem brilho que não chegam a decidir-se entre castanho e louro, a minha expressão perder-se-ia no vago, dar-me-ia vertigens."

Jean-Paul Sartre, A Náusea

sábado, 9 de maio de 2015

"Mas claro que a existência de dor no outro é algo que provoca ambiguidade em quem o ama, pois "ao mesmo tempo que me identifico 'sinceramente' com a infelicidade do outro, o que leio nessa infelicidade é que ela existe sem mim e que, sendo infeliz por si próprio, o outro me abandona: se ele sofre sem que eu seja a causa, é porque não significo nada para ele: o seu sofrimento anula-me na medida em que existe fora de mim próprio."
Esta necessidade (egoísta) de responsabilidade exclusiva pela dor do outro - que mais ninguém seja responsável pela tua dor senão eu - coloca a par a unidade e a exclusividade na origem do sofrimento. Se mais ninguém existe senão tu, por onde mais poderei sofrer? Ou, sob outro ponto de vista: eu sou o proprietário da tua dor.
Como alguém que realmente leva no bolso a chave que abre o cofre das dores do outro, numa estranha mistura entre bondade e instinto perverso. Porque um cofre é uma caixa que se pode fechar ou abrir. E quem tem a chave decide.
No fundo, devemos recordar essa pergunta fundamental que surge em O Salteador de Robert Walser:
"As pessoas que vivem consigo são felizes?""

Gonçalo M. Tavares, Atlas do corpo e da imaginação

sexta-feira, 8 de maio de 2015

"Dantes - mesmo muito tempo depois de me ter deixado -, Anny inspirava os meus pensamentos, como se eu quisesse ser-lhe útil. Agora já não penso por ninguém; nem sequer me ocupo a procurar palavras. Mais ou menos depressa, uma corrente flui dentro de mim, mas não retenho nada, deixo andar. A maior parte das vezes, como não se prendem as palavras, os meus pensamentos ficam em estado de nevoeiro. Desenham formas vagas e engraçadas, depois imergem, e esqueço-me logo deles."

Jean-Paul Sartre, A Náusea

terça-feira, 5 de maio de 2015

"Cansada do meu cansaço, última lua branca, única lembrança que me dói, nem isso sequer. Ter morrido, antes dela, sobre ela, com ela, girarmos, morto sobre morta, à volta dos pobres homens, e não termos de morrer nunca mais, de entre os moribundos. Nem sequer, nem sequer isso. A minha lua foi aqui em baixo, aqui muito em baixo, o pouco que eu soube desejar. E um dia, dentro em breve, numa noite da terra, em breve, debaixo de terra, um moribundo dirá, como eu, à luz da terra: Nem sequer isso, nem sequer isso, e morrerá, sem ter conseguido encontrar uma lembrança que o faça chorar."

Samuel Beckett, Malone está a morrer

sábado, 2 de maio de 2015

"O homem encostado à parede, cansado de caminhar de um lado para o outro, livre (de movimentos) para resolver os problemas do dia-a-dia: o apetite, o frio, o desconforto, a solidão. E do outro lado os meios de resolução: o trabalho, o amor, a amizade - e esse homem que não pára, sempre de um lado para o outro, a uma certa velocidade; homem do movimento porque é livre, homem esse que, finalmente, num certo momento, se cansa de não parar, e exige a si próprio - e talvez ao mundo - a imobilidade; e com ela exige ainda algo mais obsceno: não quero mais ser livre, podem ficar com os meus movimentos, com as minhas possibilidades, deixem-me apenas uma, uma única possibilidade: a de permanecer vivo: todos os outros movimentos façam-nos por mim. Homem (imaginemos) cansado dos movimentos que o trabalho exige, dos movimentos que o amor e a amizade exigem e que, a certa altura, pede apenas a satisfação do apetite e a manutenção do circuito respiratório: não quero mais, quero o mesmo; não quero mudar.
Porém, há uma velocidade não-humana, uma velocidade que pertence exclusivamente ao reino da Natureza e cujo motor estará localizado num sítio ao qual as mãos humanas jamais chegarão; e essa velocidade, esse movimento que atravessa o mundo e domina a biologia, jamais cessa."

Gonçalo M. Tavares, Atlas do corpo e da imaginação

quinta-feira, 30 de abril de 2015

"um raio de sol, como uma mão que me agarra e que me aperta de encontro à sua pele em brasa. É fogo a ser atravessado por cada gesto do meu corpo. São chamas nos meus olhos que abrem o caminho por onde entro e progrido. Eu sou uma força única, verdadeira e incandescente. Afasto-me cada vez mais e sei que, daqui a quarenta quilómetros, regressarei. Afasto-me e aproximo-me. Quarenta quilómetros separam-me de estar aqui a ser outra pessoa. E quarenta quilómetros poderão ser toda a minha vida. Todo o tempo desde o momento em que nasci até ao momento em que morrerei dentro de um único momento que poderá ser quarenta quilómetros. O tempo não saberá de mim. Serei outro. Desconhecerei a distância do tempo. E regressarei ao estádio. Regressarei aqui. Único durante metros e tempo"

José Luís Peixoto, Cemitério de Pianos

terça-feira, 28 de abril de 2015

"As paixões humanas são misteriosas, e as das crianças não o são menos que as dos adultos. As pessoas que as experimentaram não as sabem explicar, e as que nunca as viveram não as podem compreender. Há pessoas que arriscam a vida para atingir o cume de uma montanha. Ninguém é capaz de explicar porquê, nem mesmo elas. Outras arruinam-se para conquistar o coração de uma determinada pessoa que não quer saber delas para nada. Outras destroem-se a si mesmas porque não são capazes de resistir aos prazeres da mesa - ou da garrafa. Outras ainda arriscam quanto possuem num jogo de azar, ou sacrificam tudo a uma ideia fixa que nunca se pode realizar. Algumas pensam que só podem ser felizes noutro sítio que não aquele onde estão e vagueiam pelo mundo durante toda a vida. Há ainda as que não descansam enquanto não conquistam o poder. Em suma, há tantas paixões diferentes quantas as pessoas.
A paixão de Bastian Baltasar Bux eram os livros."

Michael Ende, A história interminável

quarta-feira, 22 de abril de 2015

"Burroughs relata um episódio elucidativo: "Vi um filme em que havia um balão que subitamente e inesperadamente encheu e desatou a subir ares fora. As pessoas que seguravam os cabos não largaram e foram arrebatadas e a maior parte delas não tinha QI de sobrevivência suficiente que lhe permitisse largar a tempo. Segundos depois estão já, a trezentos metros do chão, sessenta pessoas. Os que não largaram a corda caíram a mil ou a mil e quinhentos metros do chão. Uma lição fundamental em sobrevivência é aprender a largar.""

Gonçalo M. Tavares, Atlas do corpo e da imaginação

terça-feira, 21 de abril de 2015

"Enquanto na realidade exterior os referenciais são comuns, físicos, partilháveis, não egoístas, em relação à realidade interior, aos sentimentos, às sensações, os referenciais são sempre absolutamente centrados no Eu. É a partir de mim, das minhas sensações, que eu posso perceber as sensações dos outros, enquanto, por exemplo, na medição de um terreno, é a partir de uma certa convenção instrumental e processual que eu percebo as distâncias e os tamanhos. Para medir o exterior há réguas públicas, colectivas; para medir o interior há apenas réguas privadas, diferentes entre si, impartilháveis.
O facto de duas pessoas conversarem sobre o que sentem é quase um milagre, e entra num campo completamente diferente (num campo quase misterioso) daquele que existe, com muito maior objectividade, na conversa acerca de acontecimentos do mundo - fora de cada corpo, portanto.
Pergunta, então, Wittgenstein, pegando no exemplo de uma pessoa com dores:
"Não teríamos seguramente pena dela se não acreditássemos que ela tinha dores; mas será que esta é uma crença filosófica, metafísica? Terá um realista mais pena de mim do que um idealista ou um solipsista?"
Eis uma pergunta que coloca tudo em jogo. Eu tenho de confiar no que o outro diz que sente. Estamos no campo da crença individual, e a crença individual isola, inevitavelmente, um indivíduo de outro."

Gonçalo M. Tavares, Atlas do corpo e da imaginação

segunda-feira, 20 de abril de 2015

actos e ética
"Certos pensamentos funcionam como murros, como movimentos de quebrar abruptamente uma ligação que há muito parecia estabelecida e por isso mesmo definitiva. Murros, empurrões, beliscões, abraços: todos estes movimentos físicos poderão ser registados também entre uma pessoa e a sua interpretação do mundo; como se realmente fossem duas entidades: o corpo em si, com os seus braços, a sua pele, os seus sentimentos, pensamentos e órgãos, e uma certa consciência global, não definível por completo, mas em que se fundam todos os pequenos actos. Actuamos de determinada forma sobre a erva daninha do jardim porque temos uma concepção do mundo. Mato ou não mato o minúsculo caracol que passa à minha frente porque tenho (ou não) uma determinada filosofia da existência.
Por vezes, claro, agimos imprudentemente e sem consciência contra a nossa visão do mundo; e daí o arrependimento. Estar arrependido é tomar consciência de que um determinado acto praticado por nós foi contra a nossa visão do mundo: esse acto escapou-me, podemos dizer. Escapou ao nosso controlo, ou melhor, escapou ao controlo do nosso sistema de interpretação dos acontecimentos. E interpretar não é mais do que atribuir, em primeira análise, uma marca de bondade ou maldade a um acto. Interpretar é julgar, e há dois tipos de acções individuais: a acção que acontece antes de ser julgada pelo próprio indivíduo, instintiva; e a acção que acontece depois de ser julgada pelo indivíduo, planeada. Nesse sentido, todas as acções que são executadas depois de uma prévia reflexão sobre os seus efeitos são executadas porque foram julgadas como boas. Porém, grande parte dos actos maus foram praticados depois de planeados. Sei que este acto pertence à categoria da maldade, mas mesmo assim vou fazê-lo. Ou pior: por isso mesmo vou fazê-lo."

Gonçalo M. Tavares, Atlas do corpo e da imaginação

domingo, 19 de abril de 2015

"Tese curiosa, esta: em vez de se formalizarem leis para impedir as más práticas humanas, desenvolver-se-ia sim a técnica de modo a que esta consiga alterar a Natureza, fazendo-a mais resistente às práticas humanas; por exemplo: em vez de se proibir o despejo de produtos poluentes na água, desenvolver uma técnica que faça com que a água suporte, com indiferença, tais despejos poluentes; e mais: que a água consiga transformar esses produtos poluentes em produtos bons para o Homem e para si própria, Natureza. Os problemas causados pelo desenvolvimento da técnica seriam então corrigidos com mais técnica e não com leis limitativas do comportamento dos homens e da sociedade. Uma proposta original, uma possibilidade que o pensamento não deve ignorar."

Gonçalo M. Tavares, Atlas do corpo e da imaginação

sábado, 18 de abril de 2015

""O mais curioso é que neste mundo de máquinas e de caminhos de ferro", diz uma das personagens, "enquanto circulam os comboios e trabalham as fábricas, dois homens se defrontem e disparem um contra o outro." Espanta, pois, que no meio desta transformação do mundo mole em mundo duro se mantenham emoções - se mantenha o ódio.
Continua Bertrand, uma das personagens do romance: "O que chamamos sentimentos constitui o que há de mais persistente no nosso ser. Trazemos connosco um fundo indestrutível de conservadorismo. São os sentimentos, ou antes, convenções sentimentais."
Como se o progresso não chegasse nunca a tocar, muito menos a alterar, esse fundo do corpo, essa parte anterior e antiga - a parte que sente. Eis que, lá no fundo, algo no corpo humano, continua - utilizemos de novo a palavra - mole. No entanto, tal diagnóstico não determina o final, o final ainda não chegou: algo se poderá ainda alterar: "Eu penso que o nosso sentimento da vida caminha sempre com um atraso de meio ou mesmo de um século em relação à verdadeira vida, à vida real."
Algo que ainda não progrediu o suficiente - esse tal «sentimento de vida», esse corpo que sente é um corpo desactualizado: "O sentimento é, de facto, sempre menos humano que a vida no meio da qual nos encontramos."
Sentimos ainda, ou o corpo ainda sente porque ainda não evoluiu o bastante; o sentimento "é preguiçoso", e o mundo é dominado "pela preguiça do sentimento".
É como se os sentimentos humanos estivessem ainda no século XIX e a técnica já no século XXI."

Gonçalo M. Tavares, Atlas do corpo e da imaginação

sexta-feira, 17 de abril de 2015

"Eis uma história, de entre as "Histórias do Sr. Keuner", contada por Arendt, curiosamente numa crítica a certas atitudes políticas de Brecht: «Em tempos sombrios», conta uma das histórias, «um agente do poder chegou a casa de um homem que 'aprendera a dizer não'. O agente confiscou a casa e os víveres do homem e perguntou-lhe: 'Queres ser meu criado?' O homem meteu-o na cama, tapou-o com um cobertor, velou-o durante o sono, e obedeceu-lhe durante sete dias. Mas fez tudo isto sem pronunciar uma palavra. Ao cabo dos sete dias, o agente estava gordo de tanto comer, dormir e dar ordens, e morreu. O homem embrulhou-o no cobertor imundo, pô-lo fora de casa, lavou a cama, pintou as paredes de novo, suspirou de alívio e respondeu: 'Não'.»"

Gonçalo M. Tavares, Atlas do corpo e da imaginação

sábado, 11 de abril de 2015

"Estar mais perto nem sempre é ver melhor. A emoção pode, neste sentido, ser considerada como um ver perto de mais. Como nas palavras de Llansol: «chora em vez de ver»."

Gonçalo M. Tavares, Atlas do corpo e da imaginação

quinta-feira, 9 de abril de 2015

"A Maga teria feito o mesmo, é incapaz de insistir, não tem o menor sentido das distâncias, o tempo desfaz-se na mão dela, anda aos tropeções com o mundo. É exactamente por isso, digo-to de passagem, que é absolutamente perfeita na sua forma de denunciar a falsa perfeição dos outros."

Julio Cortázar, O Jogo do Mundo (Rayuela), capítulo 54

quarta-feira, 8 de abril de 2015

"- A explicação é um erro bem vestido - disse Oliveira. - Aponta isso."

Julio Cortázar, O Jogo do Mundo (Rayuela), capítulo 46

domingo, 22 de março de 2015

"Tinha a certeza que o velhote não tinha nada de grave, mas continuava a ver a sua cara quase plácida - mais a dar para o perplexa - enquanto o estendiam sobre a maca por entre frases de ânimo e cordiais «Allez, pépère, ce n'est rien, ça!» vindos do maqueiro, um ruivo que devia dizer a mesma coisa a toda a gente. «A não-comunicação total», pensou Oliveira. «Não é tanto que estejamos sozinhos, isso sabe-se de sobra e ponto final. Estar só é em definitivo estar só dentro de um certo plano, no qual outras solidões poderiam comunicar connosco se isso fosse possível. Mas qualquer conflito, acidente de rua ou declaração de guerra provocam uma intersecção brutal de planos diferentes, e um homem que talvez seja uma eminência do sânscrito ou da física quântica é transformado em pépère pelo maqueiro que o ajuda. Edgar Poe metido numa carroça de carga, Verlaine nas mãos de uns medicozecos, Neval e Artaud frente-a-frente com os psiquiatras. O que é que o boticário italiano de Keats poderia saber dele quando o sangrava e fazia morrer à fome? Se esses homens guardam silêncio (como é provável), os outros triunfam cegamente, sem más intenções, claro, sem saber que esse que operam, esse tuberculoso ou esse ferido despido sobre a cama está duplamente só, rodeado de seres que se movem como se estivessem atrás de uma redoma de vidro, vindos de outro tempo...»"

Julio Cortázar, O Jogo do Mundo (Rayuela), capítulo 22

sábado, 21 de março de 2015

"- Conta-lho com todos os detalhes - disse Oliveira.
- Oh, uma ideia geral é mais do que suficiente - disse Gregorovius.
- Não há ideias gerais - disse Oliveira."

Julio Cortázar, O Jogo do Mundo (Rayuela), capítulo 15
"(...) porque só as ilusões eram capazes de mover os seus fiéis, as ilusões e não as verdades."

Julio Cortázar, O Jogo do Mundo (Rayuela), capítulo 12

quinta-feira, 19 de março de 2015

"Pode ser que exista um reino milenar, mas se alguma vez chegarmos a atingi-lo, se chegarmos a sê-lo, deixará de se chamar assim. Enquanto não tirarmos o chicote da história ao tempo, enquanto não acabarmos com o inchaço de tantos até, continuaremos a tomar a beleza como um fim, a paz por um desiderato, estaremos sempre do lado de cá da porta, onde a realidade nem sempre é má, onde um número considerável de pessoas encontra uma vida satisfatória, perfumes agradáveis, bons ordenados, literatura de alta qualidade, som estéreo, e para quê inquietarmo-nos se o mundo é finito, se a história se aproxima do seu ponto óptimo, se a raça humana se apresta para sair da Idade Média para entrar na era cibernética. Tout va très bien, Madame la Marquise, tout va très bien, tout va très bien.
De qualquer modo há que ser imbecil, poeta, completamente louco para perder mais de cinco minutos com este género de nostalgias facilmente liquidáveis a curto prazo. Cada reunião de gerentes internacionais, de homens-da-ciência, cada satélite artificial, hormona ou reactor atómico esmagam um pouco mais estas falsas esperanças. O reino será de material plástico. Não é que o mundo vá acabar convertido num pesadelo de Orwell ou de Huxley; será muito pior, será um mundo delicioso, feito à medida dos seus habitantes, sem um mosquito, sem um analfabeto, com galinhas enormes e provavelmente com dezoito patas, todas elas deliciosas, com casas-de-banho telecomandadas, água de cores diferentes consoante o dia da semana, uma delicada atenção do serviço nacional de higiene, com uma televisão em cada uma das divisões da casa, grandes paisagens tropicais para os habitantes de Reiquiavique, vistas de iglôs para os de Havana, subtis compensações para domesticar toda e qualquer rebeldia, etcétera.
Um mundo satisfatório para pessoas razoáveis.
Mas será que vai restar alguém, algum homem, que não seja razoável?
Num canto qualquer, um vestígio do reino esquecido. Numa morte violenta, que castigue o infractor por se ter recordado do reino. Numa gargalhada, numa lágrima, a sobrevivência do reino. No fundo, não parece provável que o homem acabe por matar o homem. Vai-lhe escapar, vai apoderar-se dos comandos da máquina electrónica, do foquetão espacial, fintar tudo isso e depois que o apanhe quem puder. Pode matar-se tudo, menos a nostalgia do reino. Levamo-la na cor dos olhos, em cada amor, em tudo o que nos atormenta profundamente, em tudo o que nos empurra, em tudo o que nos engana. Wishful thinking, talvez, mas essa podia ser outra definição possível do bípede implume."

Julio Cortázar, O Jogo do Mundo (Rayuela), capítulo 71


terça-feira, 17 de março de 2015

"Num excerto de Morelli, esta epígrafe de L'Abbé C. de Georges Bataille: «Il souffrait d'avoir introduit des figures décharnées, qui se déplaçaient dans un monde dément, qui jamais ne pourraient convaincre.»
Um apontamento a lápis, quase ilegível: «Sim, às vezes sofre-se, mas é a única saída decente. Chega de romances hedonistas, pré-mastigados, com psicologias. É preciso esticarmo-nos ao máximo, ser voyant como Rimbaud desejava. O escritor hedonista não passa de um voyer. Por outro lado, chega de técnicas puramente descritivas, de romances «de comportamento», simples argumentos de cinema sem o resgate das imagens.»"

Julio Cortázar, O Jogo do Mundo (Rayuela), capítulo 116

segunda-feira, 16 de março de 2015

"Quantas vezes me perguntei se isto não passava de simples literatura, escrita num tempo em que corremos para o engano através de equações infalíveis e máquinas de conformismos. Mas não será também literatura perguntar-se se sabemos encontrar o outro lado do hábito ou se mais vale deixarmo-nos levar pela cibernética? Revolta, conformismo, angústia, alimentos terrestres, todas as dicotomias: o Yin e o Yang, a contemplação do Tatigkeit, fardo de palha ou perdiz faisandée, Lascaux ou Mathieu, que amálgama de palavras, que dialéctica de bolso, com tormentas de pijama e cataclismos de sala de estar. O simples facto de nos interrogarmos sobre a escolha a fazer vicia e turva o elegível. Sim, não, desta forma... É como se uma escolha não pudesse ser dialéctica, como se a forma como é colocada a empobrecesse, isto é, a falseasse, isto é, a transformasse noutra coisa. Entre o Yin e o Yang, quantos eões? Do sim ao não, quantos talvez? Tudo é literatura, isto é, fábula. Mas de que é que nos serve a verdade que deixa o honesto proprietário angustiado? A nossa verdade possível tem de ser invenção, isto é, escrita, literatura, pintura, escultura, agricultura, piscicultura, todas as turas deste mundo. Os valores, turas, a santidade, uma tura, a sociedade, uma tura, o amor, pura tura, a beleza, tura das turas"

Julio Cortázar, O Jogo do Mundo (Rayuela), capítulo 73

sábado, 14 de março de 2015

Poema em linha reta

Nunca conheci quem tivesse levado porrada.

Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,

Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cômico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado
[sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe — todos eles príncipes — na vida…

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?

Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?

Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos — mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que venho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

Fernando Pessoa (Álvaro de Campos)

sexta-feira, 2 de janeiro de 2015

- O que vai fazer a seguir?
- Vou tomar banho.
- E a seguir?
- Vou comer.
- E a seguir?
- Vou dormir.
- E a seguir?
- Quando acordar?
- Sim.
- Vou comer outra vez e vou à casa de banho.
- E vai fumar um cigarro?
- Não estou a planear fumar um cigarro, mas não prometo nada.
- Então o que está a planear fazer?
- Essa pergunta é muito pessoal.
- Não quer dizer quais são os seus planos?
- Não.
- Porquê?
- Porque tal como disse, são meus.
- Nunca fala com ninguém sobre os seus planos?
- Às vezes falo, com pessoas próximas e em quem confio.
- Os seus planos são ambiciosos?
- Depende do que entende por ambicioso. Essa palavra é muito relativa.
- Os seus planos são de curto, médio ou longo prazo?
- São de curto/médio prazo, mas os sonhos são de longo prazo.
- E os sonhos? Costuma partilhar com alguém os seus sonhos?
- Não. Ainda estou a reaprender a "partilhá-los" comigo.
- Quando era criança, o que queria "ser" quando fosse grande?
- Veterinária.
- O que sente, hoje, por não ser veterinária?
- Neste momento não tenho vontade de ser veterinária. Não me arrependo de não ter seguido esse caminho.
- Está contente com o seu percurso?
- Sim. Começa agora a fazer sentido. Consigo compreender por que motivo tudo aconteceu desta forma e não de outra.
- O que sente em relação ao futuro?
- O futuro não me assusta.
- Porquê? Pensa que sabe, de alguma forma, que vai ser favorável? É uma optimista?
- Em relação ao futuro sei muito pouco. Estou cansada de tentar prever o futuro. Tem sido uma luta. Custe o que custar, tenho de me convencer que jamais conseguirei prever o futuro. O "destino" está sempre a trocar-me as voltas. Muitas vezes convenço-me que sei o que vai acontecer a seguir, mas nunca acerto porque o futuro não depende só de mim. Para conseguir prever o futuro seria necessário conseguir prever também o dos outros. Isso é muito difícil.
- Difícil ou impossível?
- Ora aí está uma boa pergunta.
- E qual é a resposta?
- Não sei.