terça-feira, 2 de junho de 2015

"A perigosa intuição de Platão para os temas perigosos encontra o ponto cego de toda a pedagogia e política da alta cultura: a desigualdade efectiva dos homens ante o conhecimento dá lugar ao poder. Sob a forma lógica de um exercício grotesco da definição, o diálogo do Político desenvolve o preâmbulo de uma antropotécnica política; nele não se trata já de dirigir, domesticando-o, um rebanho já dócil, mas de criar sistemática e repetidamente exemplares humanos mais próximos do seu estado ideal. O exercício começa de maneira tão cómica, que até o seu final, que o é muito menos, também poderia facilmente suscitar riso. Que é mais grotesco que uma definição da arte do Estado como uma disciplina que teria que ver com o andar a pé dos seres que vivem em rebanho (pois é bem sabido que os condutores de homens não exercem a criação de animais aquáticos, mas de animais que andam sobre terra)? Entre estes há que separar os alados dos não alados e caminhantes, para se poder chegar às populações humanas, que, como é sabido, carecem de asas e plumas. Então, continua dizendo o Estrangeiro, este mesmo povo pedestre sob o domínio da natureza, de novo se divide claramente em dois grupos: «uns, sem cornos, os outros, com cornos». Uma coisa destas, o interlocutor inteligente não precisa que lha digam duas vezes. A ambos os grupos correspondem igualmente dois tipos de arte da pastorícia: pastores para rebanhos de animais que têm cornos, e pastores para rebanhos que os não têm. Seria assim evidente que só se encontrará o verdadeiro condutor dos grupos humanos eliminando os pastores dos animais com cornos. Pois se se quisesse custodiar os homens com pastores de animais com cornos, que mais se poderia esperar do que abusos por parte dos ineptos aparentemente aptos? Por conseguinte, os bons reis ou basileioi, diz o Estrangeiro, apascentam um rebanho sem cornos (Politikós, 265d). Mas isto não é tudo: é ainda sua tarefa cuidar dos seres viventes sem misturar, isto é, criaturas que não copulem fora da sua espécie, como costumam fazer por vezes cavalos e burros. Deverão então velar pela endogamia, e buscar meios de impedir a mestiçagem. Se agregarmos a estes implumes, descornados, endógamos, por último, o carácter bípede, estará seleccionada a arte do guardião, aplicada a bípedes implumes sem cornos, surgidos de acasalamentos sem mistura, como a arte verdadeira, contraposta a todas as outras competências. Esta arte da pastorícia preventiva, deverá por seu turno ser subdividida em tirânica-forçada e livre. Se eliminarmos agora a forma tirânica como falsa e enganosa, o que resta será a arte estatal autêntica, definida como «a guarda voluntária de bípedes voluntários» (Politikós, 276e)."

Peter Sloterdijk, Regras para o parque humano

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