De qualquer modo há que ser imbecil, poeta, completamente louco para perder mais de cinco minutos com este género de nostalgias facilmente liquidáveis a curto prazo. Cada reunião de gerentes internacionais, de homens-da-ciência, cada satélite artificial, hormona ou reactor atómico esmagam um pouco mais estas falsas esperanças. O reino será de material plástico. Não é que o mundo vá acabar convertido num pesadelo de Orwell ou de Huxley; será muito pior, será um mundo delicioso, feito à medida dos seus habitantes, sem um mosquito, sem um analfabeto, com galinhas enormes e provavelmente com dezoito patas, todas elas deliciosas, com casas-de-banho telecomandadas, água de cores diferentes consoante o dia da semana, uma delicada atenção do serviço nacional de higiene, com uma televisão em cada uma das divisões da casa, grandes paisagens tropicais para os habitantes de Reiquiavique, vistas de iglôs para os de Havana, subtis compensações para domesticar toda e qualquer rebeldia, etcétera.
Um mundo satisfatório para pessoas razoáveis.
Mas será que vai restar alguém, algum homem, que não seja razoável?
Num canto qualquer, um vestígio do reino esquecido. Numa morte violenta, que castigue o infractor por se ter recordado do reino. Numa gargalhada, numa lágrima, a sobrevivência do reino. No fundo, não parece provável que o homem acabe por matar o homem. Vai-lhe escapar, vai apoderar-se dos comandos da máquina electrónica, do foquetão espacial, fintar tudo isso e depois que o apanhe quem puder. Pode matar-se tudo, menos a nostalgia do reino. Levamo-la na cor dos olhos, em cada amor, em tudo o que nos atormenta profundamente, em tudo o que nos empurra, em tudo o que nos engana. Wishful thinking, talvez, mas essa podia ser outra definição possível do bípede implume."
Julio Cortázar, O Jogo do Mundo (Rayuela), capítulo 71
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