segunda-feira, 16 de março de 2015

"Quantas vezes me perguntei se isto não passava de simples literatura, escrita num tempo em que corremos para o engano através de equações infalíveis e máquinas de conformismos. Mas não será também literatura perguntar-se se sabemos encontrar o outro lado do hábito ou se mais vale deixarmo-nos levar pela cibernética? Revolta, conformismo, angústia, alimentos terrestres, todas as dicotomias: o Yin e o Yang, a contemplação do Tatigkeit, fardo de palha ou perdiz faisandée, Lascaux ou Mathieu, que amálgama de palavras, que dialéctica de bolso, com tormentas de pijama e cataclismos de sala de estar. O simples facto de nos interrogarmos sobre a escolha a fazer vicia e turva o elegível. Sim, não, desta forma... É como se uma escolha não pudesse ser dialéctica, como se a forma como é colocada a empobrecesse, isto é, a falseasse, isto é, a transformasse noutra coisa. Entre o Yin e o Yang, quantos eões? Do sim ao não, quantos talvez? Tudo é literatura, isto é, fábula. Mas de que é que nos serve a verdade que deixa o honesto proprietário angustiado? A nossa verdade possível tem de ser invenção, isto é, escrita, literatura, pintura, escultura, agricultura, piscicultura, todas as turas deste mundo. Os valores, turas, a santidade, uma tura, a sociedade, uma tura, o amor, pura tura, a beleza, tura das turas"

Julio Cortázar, O Jogo do Mundo (Rayuela), capítulo 73

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