terça-feira, 19 de junho de 2012

"- Entre um escritório aquecido e confortável e esta sala não há a mais pequena diferença - respondeu Andrei Efimich. - O repouso e a satisfação não estão fora do homem, mas dentro de si próprio.
- Que quer isso dizer?
- O homem vulgar espera o bom e o mau do exterior, quer dizer, do carro e do escritório, enquanto o homem que pensa espera-o de si próprio.
- Vá pregar essa filosofia para a Grécia, onde está calor e cheira a laranjas; o clima aqui não favorece.
- (...) Pode resistir-se ao frio como a qualquer outra dor. Marco Aurélio disse: «A dor é a exteriorização viva da dor: faz um esforço de vontade para mudar esta exteriorização, repele-a, deixa de te lamentar, e a dor desaparecerá.» Isto é exacto. O sábio ou simplesmente o homem que pensa, que medita, distingue-se precisamente pelo facto de que despreza o sofrimento. Está sempre satisfeito e nada o desgosta.
- Quer isso dizer que sou idiota, visto que sofro, estou descontente e desgosta-me a maldade humana.
- Não deve pensar assim. Se reflectir, compreenderá a significação de tudo o que é exterior, tudo o que nos inquieta. Há que tentar compreender a vida; nisso está o verdadeiro bem.
- Compreender a vida... - replicou Ivan Dmitrich, franzindo o sobrolho. - O exterior, o interior... Perdão, mas não o compreendo. A única coisa que sei - concordou, levantando-se e olhando irritado para o médico -, a única coisa que sei é que Deus me criou com sangue quente e nervos, como está a ouvir! O tecido orgânico, se é capaz de vida, deve reagir a qualquer excitação. E eu reajo! À dor respondo com gritos e lágrimas; à maldade com indignação; à vilania, com asco. Quanto a mim, isto é, na realidade, aquilo a que se chama vida. Quanto mais débil é o organismo, menos sensível se mostra e mais frouxamente resiste à excitação. E quanto mais elevado, tanto mais sensível e enérgica é a sua reacção à realidade. Como pode ignorá-lo? É você médico e não sabe umas coisas tão elementares! Para desprezar a dor, estar sempre satisfeito e não se preocupar com coisa alguma há que atingir esse estado - e Ivan Dmitrich apontou para o mujique obeso, transbordante de gordura -, ou então ter-se identificado com a dor até ao extremo de perder qualquer sensibilidade em relação a si próprio; ou seja, por outras palavras, deixar de existir.

- Admitamos que a tranquilidade e a satisfação estão dentro do próprio homem, e não fora dele - disse. - Admitamos que há que desprezar o sofrimento e não se admirar com coisa alguma. Mas em que se apoia você para o proclamar? Julga-se um sábio? Um filósofo?
- Não, não sou filósofo, mas isto qualquer pessoa o deve proclamar, porque é sensato.
- Não, o que pretendo saber é porque se considera competente no que respeita à compreensão do mundo, o desprezo pelo sofrimento e tudo o mais. Acaso não terá sofrido nunca? Tem alguma noção do que é o sofrimento? Diga-me: batiam-lhe quando era pequeno?
- Não, meus pais eram contrários aos castigos corporais.
- Pois, a mim, meu pai tocava-me a pavana. Era um funcionário público, de carácter violento, que sofria de hemorróidas, e tinha um grande nariz e pescoço amarelo. Mas falemos de si. Em toda a sua vida nunca ninguém lhe tocou nem com um dedo, ninguém o assustou nem lhe bateu; tem uma saúde de ferro, cresceu amparado por seu pai, que lhe pagou os estudos, e depois obteve imediatamente uma sinecura. Vive de graça há mais de vinte anos, numa casa com aquecimento e luz, tendo uma serviçal; deixam-no trabalhar como e quando quer; pode inclusivamente não fazer nada. É preguiçoso e frouxo por natureza, por isso tratou de organizar a sua vida de modo a que nada o inquietasse nem obrigasse a mexer-se. Abandonou tudo nas mãos do assistente e outros canalhas, enquanto o senhor ficava na sua casa aquecida e silenciosa, juntava dinheiro, lia livros, entregava-se a meditações sobre toda a espécie de sublimes coisas estúpidas e - aqui Ivan Dmitrich parou fitando o nariz vermelho do médico - bebia. Numa palavra, não sabe nada da vida, não a conhece em absoluto; da realidade tem apenas uma noção teórica. Se desdenha do sofrimento e nada o perturba, é por uma razão muito simples: vaidade das vaidades; o externo e o interno, o desprezo pela vida, pelos sofrimentos e pela morte, a compreensão do mundo, o verdadeiro bem: tudo isto é a filosofia mais apropriada ao vadio russo. (...) E o que é esse fantástico «autêntico bem»? Não existe resposta, claro. A nós têm-nos aqui entre grades, apodrecemos, martirizamo-nos, mas isso é belo e racional, porque entre esta enfermaria e um escritório aquecido e confortável não há nenhuma diferença. É uma filosofia muito cómoda; não há nada a fazer, a pessoa tem a consciência tranquila e considera-se sábio... Não, senhor, isso não é filosofia, não é pensamento, não é grandeza de ideias, mas preguiça, mentalidade de faquir, hipóteses... Sim! - voltou a irritar-se Ivan Dmitrich -, despreza o sofrimento, mas se lhe entalassem um dedo numa porta bradava aos céus!"

Anton Tchekov, "A Enfermaria n.º 6 e outros contos"

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